Sobre a representação dos arquivos do Legislativo no Conarq

Sobre a representação dos arquivos do Legislativo no Conarq

Entrevista com Vanderlei dos Santos, representante titular dos arquivos do Legislativo no Conarq1

Introdução

É com enorme satisfação que oferecemos aos leitores da Revista do Arquivo essa ótima entrevista com o nosso sempre colaborador Vanderlei Batista dos Santos. Com muita franqueza e lucidez, a partir da sua condição de representante setorial do Conselho Nacional de Arquivos (Conarq), Vanderlei nos fornece um bom panorama sobre aspectos importantes da situação geral dos arquivos da esfera do Poder Legislativo no Brasil. O foco da nossa conversa aborda questões cruciais sobre (a falta de) instância de governança desses arquivos, as debilidades e dificuldades para a agregação dos profissionais que atuam nesse campo de trabalho.

Boa leitura.

Vanderlei Batista dos Santos é arquivista, mestre e doutor em Ciência da Informação pela Universidade de Brasília. Servidor da Câmara dos Deputados, onde é o atual Diretor da Coordenação de Arquivos. É docente em cursos de pós-graduação em Ciência da Informação, consultor em projetos de gestão de documentos e informação. Componente da Câmara Técnica de Documentos Eletrônicos do Conselho Nacional de Arquivos (2002-2020) e há mais de uma década representa parcela dos arquivos do Poder Legislativo no Conarq.

SOBRE AS CÂMARAS SETORIAIS

O que esperar do representante titular do legislativo no Conarq?

Nossa função é representar os arquivos do segmento das instituições às quais estamos vinculados. Qual seja, levar as demandas dos arquivos das instâncias do poder legislativo ao conhecimento e às discussões no Conarq.

Veja, o Conselho Nacional de Arquivos (Conarq) é criado pela Lei 8.159, em 1991, mas, efetivamente, só passa a funcionar em 1995. Desde a reunião de instalação do Conarq, em 15 de dezembro de 1994, conforme pode ser observado nos registros de sua primeira ata, já há o registro da participação de dois representantes do legislativo, a Gracinda Assucena de Vasconcellos, diretora do Arquivo da Câmara e Maria Helena Rui Ferreira, funcionária do Senado Federal. Minha participação no Conarq se inicia em 2002, quando passo a integrar a Câmara Técnica dos Documentos Eletrônicos no Conarq.

Em 2006 é proposta a criação da Câmara Setorial de Arquivos do Legislativo no Conarq, encaminhada pela Câmara dos Deputados, à época representada pelos arquivistas Lamberto Ricarte Serra Júnior e Daniela Francescutti Hott. Essa proposta foi resultado das discussões levadas a cabo pelos representantes de instituições do poder legislativo presentes no 1º Encontro de Arquivos do Legislativo, ocorrido em Porto Alegre – RS, no escopo do II Congresso Nacional de Arquivologia. Pode-se afirmar, pelo exposto, que há um histórico de tentativa de organização da representação dos arquivos dos legislativos no Brasil dentro no Conarq e, também, nos Congressos de Arquivologia.

O Regimento Interno atual do Conarq prevê as seguintes competências para o Conselheiro:

Art. 28. Compete ao conselheiro do Conarq, como representante de seu segmento:
I – propor a inclusão de matérias na pauta de votação;
II – comparecer às reuniões plenárias;
III – apreciar a ata de reunião;
IV – debater e votar a matéria em discussão;
V – requerer informações, providências e esclarecimentos ao Presidente do Conarq
VI – realizar estudos, apresentar proposições, bem como apreciar e relatar as matérias que lhes forem atribuídas;
VII – prestar informações e esclarecimentos ao Presidente do Conarq quanto às ações para a implantação da política nacional de arquivos públicos e privados em seu segmento de representação;
VIII – solicitar a inclusão, em ata de reunião, de declarações de voto, quando entender conveniente; e
IX – apresentar, por escrito, propostas sobre assuntos sujeitos à análise do Conselho, entregando cópia à Coordenação de Apoio ao Conarq, do Arquivo Nacional.

Se observarmos bem, são atividades de alto nível: reuniões, debates, compartilhamento de informações e estudos. Falta a operacionalização que, supõe-se, deveria ficar a cargo das instituições representadas. Há que destacar, por outro lado, que há um avanço na representatividade no Conarq, quando os Conselheiros passaram a ser eleitos2. O próprio processo de indicação embute ações de organização da área e dos segmentos que podem apresentar representantes. Claro, a eleição não é para toda a composição do Conarq, limita-se àquelas áreas vinculadas à sociedade civil e ao Poder Executivo: representantes das Universidades, das instituições de pesquisa; representantes dos arquivos públicos estaduais e municipais e da sociedade civil. O poder legislativo e o judiciário continuam a indicar seus representantes. Entendo, ainda, que os critérios estabelecidos pela Câmara de Seleção criada especificamente por conduzir o processo seletivo, e da qual fiz parte, foram adequados e contribuíram para dar seriedade à iniciativa3.

Pois bem, tudo isso se refere às formalidades, porém, na prática as dificuldades são enormes. O artigo 29 do regimento estabelece que “Os conselheiros deverão apresentar informações sobre as atividades realizadas no âmbito do seu respectivo segmento de representação para implementação da política nacional de arquivos públicos e privados, com o objetivo de subsidiar o relatório anual de atividades do Conarq”. E isso já aconteceu este ano, quando fomos cobrados sobre o que tínhamos realizado. Ou seja, estabeleceram-se regras para que o conselho seja mais efetivo sobre sua representação. Ainda que existam vários problemas no funcionamento das reuniões do Conarq, reconheço que houve avanços em relação à transparência nas informações. Por exemplo, o site da câmara técnica sobre documentos eletrônicos disponibiliza os estudos, o que estamos fazendo, pauta de reunião. Nada disso tinha antes. Isso virou um padrão e precisa ser assegurado. Nem sempre estamos em acordo com alguma deliberação, mas faz parte da democracia no órgão.

FALTA ESTRUTURA PARA A ATUAÇÃO DO CONARQ

Você acha que o Conarq garante estrutura suficientes para o bom exercício dessas Câmaras técnicas?

Sempre fui muito crítico da forma como o Conarq trabalhava. As normas do Conselho eram elaboradas por um petit comité, sem muito debate, que não ampliava as discussões e não abria espaço para pessoas novas. E essas normas não faziam muito sentido, não tinham aplicação prática. Eu era crítico também do que chamo de monumentalização do Conarq, onde havia uma disputa pelos cargos, mas que não se traduzia em trabalho, em produto. O interesse maior era aumentar os currículos, em detrimento de um trabalho efetivo que enfrentasse os problemas reais dos arquivos. Na minha opinião, esse era um dos motivos dos fracassos das câmaras técnicas. Além disso, a própria gestão das câmaras técnicas era difícil, pois ela era centralizada no Arquivo Nacional, e eu não concordava com isto. É que o Arquivo Nacional garantia a estrutura para o funcionamento dessas câmaras técnicas, a elaboração de atas, de relatórios, pois nós, no exercício dos nosssos ofícios, não tínhamos tempo para fazer isto.

Ainda assim, nem mesmo o Arquivo Nacional tinha estrutura suficiente para dar conta das atividades dessas câmaras técnicas. Daí que na prestação de contas não havia o que apresentar. Outro problema era que o Plenário não tinha competência para aprovar as propostas das câmaras técnicas. Muitas vezes, as câmaras ficavam meses produzindo determinadas produções e estas eram apresentadas para aprovação de um plenário em poucas horas de reunião, sem ter participado da elaboração e de seus debates, sem condições de aprofundamento. Isso tornava possível a publicação de normas com evidentes definições distintas uma das outras, com usos de terminologias contraditórias.

Isso advém de outro problema. Por exemplo: nós temos um dicionário de terminologia arquivística, elaborado pelo Arquivo Nacional para atender os seus interesses e não a arquivologia nacional. Ainda assim, há diversas normas do Conarq que adotam definições e terminologias que não coincidem com o que constam nos verbetes do dicionário. Então, temos um problema: se as normas divergentes foram aprovadas pelo Conarq, qual a que vale?

SOBRE O PROBLEMA DA REPRESENTAÇÃO

Você sugeriu que o modelo de representação melhorou, mas que ainda existem muitos problemas. Fale um pouco mais a esse respeito.

De fato, uma coisa é ser alçado ao cargo, outra é representar efetivamente. Eu entendo que a indicação para a função de conselheiro é nominal e não pertencente à instituição à qual o membro pertence. Isso é um problema sério. Afinal, na verdade, não existe essa estrutura, em nenhuma esfera do legislativo. E essa representação é muito complicada. Quando você participa de uma reunião plenária, via de regra, sequer está levando as demandas da sua instituição, senão as próprias do seu local de trabalho. Nesse sentido, estaria representando, realmente, o Poder Legislativo? Acredito que essa visão podia ser utilizada para ilustrar a situação da maioria das representações no Conarq4.

(…) há diversas normas do Conarq que adotam definições e terminologias que não coincidem com o que constam nos verbetes do dicionário. Então, temos um problema: se as normas divergentes foram aprovadas pelo Conarq, qual a que vale?

Este não é um problema exclusivo dos arquivos e da Arquivologia. Entendo que é estrutural e poderia ser observado em diversas outras áreas profissionais e de conhecimento no país, mas, claro, é pura especulação. Entendo que essa situação estava ligada a outro problema: as instituições que apresentaram a representação dessas pessoas têm consciência do suporte que esses representantes necessitam? No mínimo, os conselheiros precisam que suas instituições lhes permitam utilizar algum tempo de sua carga de trabalho para ler, analisar e propor alterações nos documentos submetidos ao plenário e apresentar suas propostas nas reuniões. Em conversa com outros conselheiros, fica claro que essa é uma realidade compartilhada. Tanto é verdade que, em geral, os atos de nomeação de conselheiros, no âmbito de suas instituições dispõem que as ações relativas ao Conarq devem ser sem prejuízo das suas atividades normais nas instituições em que trabalham. Então, ouso dizer: das duas uma, ou a instituição considera que as suas atividades normais não são sérias e exigem sua dedicação integral ou as atividades que surgem de sua representação no Conarq não o são.

No caso da Câmara dos Deputados, é preciso observar que, ao longo dos anos, por meio da ação de profissionais do calibre de Nilza Teixeira Soares e Astréa de Moraes e Castro, a instituição construiu uma reputação sólida de referência de melhores práticas arquivística, assim, acabamos por ser consultados pelas mais diversas instituições, inclusive, para além do poder legislativo. Nesse sentido, a representação demandada pelo Conarq já é praticada, mesmo que sem um projeto efetivo para sua execução. O acervo arquivístico custodiado pela Coordenação de Arquivo da Câmara dos Deputados é grande, talvez na proporção de um Arquivo Municipal, mede cerca de 17 Km e tem seu início em 1823. É composto de documentos manuscritos, audiovisuais, sonoros, publicações oficiais, tanto nos formatos tradicionais quando digitais. Com um campo de aplicação prática desta envergadura e com uma equipe de arquivistas com formação adequada é natural a expectativa que a instituição continua a gerar entre seus pares e, também, para outras instituições. Mas, e a estrutura de representação do segmento legislativo?

O programa Interlegis5, criado em 1997, poderia ser um ponto de interseção, uma vez que a atividade legislativa na qual é focado, também é a geradora dos mais importantes documentos arquivístico desse tipo de instituição. Mas, no momento, ainda falta uma ação objetiva e efetiva das áreas de arquivo no sentido de usar essa estrutura de difusão de práticas e orientações técnicas às câmaras municipais e assembleias legislativas, promovendo o desenvolvimento e compartilhamento de instrumentos e práticas arquivísticas e discutindo e difundindo as normas emanadas do Conarq.

(…) no momento, ainda falta uma ação objetiva e efetiva das áreas de arquivo no sentido de usar essa estrutura de difusão de práticas e orientações técnicas às câmaras municipais e assembleias legislativas, promovendo o desenvolvimento e compartilhamento de instrumentos e práticas arquivísticas e discutindo e difundindo as normas emanadas do Conarq.

Já que a Câmara dos Deputados se tornou uma instituição de referência, seus representantes, juntamente com o Senado Federal, com quem divide a representação do legislativo no Conarq, poderiam formalizar ações por meio dessa rede, investirem na consecução de uma estrutura que permitisse oferecer às instituições que compõe a rede algum suporte para o desenvolvimento de suas funções arquivísticas. Como exemplo prático, os arquivistas poderiam propiciar ou intermediar a realização de cursos presenciais ou online sobre temas como elaboração de instrumentos de gestão, política de acesso, preservação digital, implantação de SIGADs, dentre outros.

O momento em que posso compartilhar um documento a que tive acesso no exercício ético de minhas competências é quando ele se tornar público, o que, no caso, é a publicação no site da instituição.

Ou seja, dito tudo isto, efetivamente, devido à inexistência de uma estrutura que permita representar, efetivamente, o poder legislativo, o que representamos são a Câmara dos Deputados e o Senado Federal. Por outro lado, é sempre importante destacar que nenhum conselheiro representa o Conarq em suas instituições, senão, quando, eventualmente, o plenário do Conarq o incumba de fazê-lo. Não se encaixando na exceção, o único representante do Conarq é seu presidente. Minha atuação, no contexto da Câmara, é de um servidor público cuja atuação está sujeita ao regime jurídico único (Lei nº 8.112/1990) e ao regimento da Câmara dos Deputados.

Faço toda essa contextualização para explicar que, como é sabido por todos, o parlamento tem produzido leis com impacto na atividade arquivística, dentre elas, podem ser destacadas a lei de acesso à informação (Lei nº 12.527/2011) e a lei geral de proteção de dados pessoais (Lei nº 13.709/2018). Mais recentemente, começou a tramitar um projeto de lei que visa “atualizar” a lei dos arquivos, documento a que tive acesso no escopo de uma consulta feita pela parlamentar que o propôs. Em reunião plenária do Conarq foi questionado o motivo dessa informação não ter sido levado ao conhecimento dos conselheiros e que, nesse sentido, teria faltado com minhas atribuições junto àquele colegiado. Considero que essa análise é totalmente equivocada. O momento em que posso compartilhar um documento a que tive acesso no exercício ético de minhas competências é quando ele se tornar público, o que, no caso, é a publicação no site da instituição. Ou quando ocorra autorização explícita do parlamentar para esse fim. O mesmo ocorre com as demais instituições, embora possamos dizer que, geralmente, com menos impacto nas demais.

SOBRE DIAGNÓSTICOS DOS ARQUIVOS DO LEGISLATIVO

Você poderia apresentar um panorama geral da situação dos arquivos do Poder Legislativo nos níveis
estaduais e municipais?

Sei que nos anos 2006/7, o Interlegis enviou carta para os arquivos das câmaras municipais e assembleias estaduais para elaborar um diagnóstico desses arquivos e que nos anos seguintes fez diversas atividades na tentativa de modernizar os trabalhos legislativos dessas instituições, porém não se tem notícia de relatório quanto aos resultados desse empreendimento.

Só soube desta ação do Interlegis, em 2012, quando, no intuito de subsidiar os trabalhos de proposição da instalação da Câmara Setorial de Arquivos do Poder Legislativo, entre julho e setembro daquele ano, eu e o colega da Câmara, André Freire da Silva, realizamos pesquisa para fins de diagnóstico, cujo universo era formado pelos arquivos do Poder Legislativo dos 26 estados, mais o Distrito Federal. Ao pesquisar sobre a existência desses dados, soubemos da tentativa realizada pelo Interlegis. Nessa nova oportunidade, elaboramos um formulário estruturado, fizemos contatos por telefone e enviamos o questionário por e-mail. Os dados coletados nos informaram quanto à identificação sobre unidades de documentação, a composição e formação dos recursos humanos lotados nos arquivos institucionais, a existência de instrumentos e políticas arquivísticas existentes e o volume e as características do acervo documental.

Mesmo sendo eu um ávido defensor da realização de congressos arquivísticos, chego à conclusão de que as resoluções e recomendações desses eventos acabam sendo pro forma.

AÇÕES E LIMITES DAS INSTÂNCIAS ASSOCIATIVAS E A FALTA DE ESTRUTURA DO CONARQ

O Conarq oferece estrutura adequada para atuação dos conselheiros? Qual a relação entre esses fóruns de Arquivologia (instâncias de pesquisadores, congressos, associações) e o Conarq?

O Fórum de Associações de Arquivologia do Brasil não tem o objetivo de dar suporte ao Conarq, mas, como comentado anteriormente, pode ser e tem sido utilizado para facilitar o diálogo entre representantes dessas instâncias, o que é muito positivo. Porém, de fato, a representação no Conarq não garante estrutura que me permita esse diálogo com os arquivos do legislativo do Brasil. Como conselheiro do segmento do poder legislativo, meu alcance é, no máximo, com os arquivos da Câmara e do Senado, mesmo assim, dentro das minhas atividades normais e não, verdadeiramente, como representante do Conarq. O que o Conarq oferece? Apenas a possibilidade de se criar estrutura, o respaldo normativo, com determinadas atribuições, mas não uma estrutura real. O Arquivo Nacional, potencialmente, poderia oferecer essa estrutura, mas, embora tente, não consegue cumprir com todas as necessidades que se impõem.

De volta ao segmento que represento, observo que fiz um estudo analisando os encontros dos arquivos do Legislativo (EAL) que ocorreram durante as programações dos Congressos de Arquivologia. Mesmo sendo eu um ávido defensor da realização de congressos arquivísticos, chego à conclusão de que as resoluções e recomendações desses eventos acabam sendo pro forma. No meu estudo sobre o EAL, foi analisada a aplicação efetiva das decisões e encaminhamentos de cada edição do encontro e a conclusão foi que, de forma geral, nada foi, realmente, implementado. Aliás, em 2014, quando apresentei tal estudo, ocorreu a última edição do evento de arquivos do legislativo. Tentamos realizar uma nova edição em 2016, na Paraíba, sem sucesso. Estávamos cansados, pois éramos sempre as mesmas e poucas pessoas que os organizavam: Câmara dos Deputados e Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Ao menos tomamos uma decisão, em 2014, que passou a ser implementada, os responsáveis pela organização do encontro dos arquivos do legislativo seriam os representantes da Assembleia do Estado anfitrião do Congresso Nacional de Arquivologia, afinal, como nossos encontros sempre estiveram vinculados ao CNA, isso faz pleno sentido.

(…) não há interlocução com os Estados e municípios. E quando isso ocorre é mais no nível pessoal, no relacionamento entre servidores de instituições e não das instituições entre si. Em resumo, a forma como se dá a representação reflete as fragilidades do Conarq e do próprio Arquivo Nacional, como seu órgão técnico.

Convidados pela organização do IX CNA para organizar o EAL em Santa Catarina, contatamos a Assembleia de Santa Catarina que considerou inoportuna a realização do evento da forma presencial em tempos pandemia. Então, também não houve EAL na edição de 2022 do CNA. Outra questão sempre tem sido a baixa adesão das instituições do legislativo. Em geral temos reunido de 15 a 20 pessoas vinculadas a essas instituições em evento de âmbito nacional, envolvendo sempre as mesmas instituições. Uma representação tão pequena justifica a realização do encontro?

Há ainda a tentativa de interlocução entre Câmara, Senado e uma representação do Congresso, que seria uma terceira Casa. Em 2017 montamos um grupo interinstitucional para avaliar incongruências, principalmente no processo legislativo e no sistema que viabiliza a implantação do processo legislativo digital. Embora o foco não seja a atividade arquivística, temos tentado incluí-la no escopo. Porém, não há interlocução com os Estados e municípios. E quando isso ocorre é mais no nível pessoal, no relacionamento entre servidores de instituições e não das instituições entre si. Em resumo, a forma como se dá a representação reflete as fragilidades do Conarq e do próprio Arquivo Nacional, como seu órgão técnico.

Não há autoridades nas 3 esferas – municipal, estadual e federal – que possam levantar demandas, fazer observatório etc. A representação é frágil no que diz respeito à estruturação geral. Não há uma rede formal, não há estrutura para atuação dos membros do Conarq junto aos arquivos do Poder Legislativo no Brasil. Não tem trabalho de base, de reconhecimento das instituições da importância das funções exercidas pelo Conarq. Como assumir representação do legislativo sem prejuízo de suas atribuições no local de trabalho?

Nos últimos anos, vem se fortalecendo a discussão que propõe a separação do Conarq do Arquivo Nacional, afinal, como órgão colegiado suprapoderes, o Conarq não deveria estar subordinado a um órgão do poder executivo. Ocorre que, porém, o bom funcionamento do Conarq requer o apoio, por meio de uma estrutura e um orçamento próprio. Não conheço a existência ou previsão de que possa existir um órgão que muda de subordinação de tempos em tempos, em decorrência da vinculação de seu dirigente, no caso da proposta de que cada poder dirigiria o Conarq a cada determinado ciclo. A vinculação formal do Conarq mudaria de tempos em tempos ou ele ficaria sem vínculo formal? Teria pessoal e orçamento próprios? Sabemos, infelizmente, que isso tem poucas chances de acontecer. É preciso montar estrutura e dispor de financiamento. Ou seja, a proposta é interessante, mas, nos dias de hoje isso parece ser mais romântico que real.

A RIQUEZA DE INFORMAÇÃO DOS ARQUIVOS DO LEGISLATIVO PARA A HISTÓRIA DO BRASIL

Como você resumiria a importância dos arquivos do Poder Legislativo?

Da mesma forma que qualquer acervo documental, nós temos documentos que registram a finalidade dessas instituições. Para que serve o Poder Legislativo? Para criar leis, para normatizar ou criminalizar comportamentos, aprovar a lei de diretrizes orçamentária e fiscalizar a utilização do orçamento pelo Executivo, fiscalizar as ações do Executivo e dos membros do próprio Legislativo, bem como representar os cidadãos que os elegeram. Ou seja, os acervos permitem entender a formação e o funcionamento do Brasil sob a ótica do legislativo.

O acervo mais antigo que temos, de 1823, é do arquivo da Assembleia Constituinte do Império do Brasil. É, portanto, anterior à própria existência do legislativo brasileiro, quando foi criada uma comissão para elaborar a primeira Constituinte, para escrever a primeira Carta Magna do Brasil. Infelizmente deu errado, pois o Imperador soube que perderia algumas funções e poderes e concluiu por cessar com as atividades daquela Assembleia, ocasião em que, também, promulgou sua própria constituição. Felizmente, ela manteve muitas das bases que estavam na proposta do parlamento.

A Câmara dos Deputados é instalada em 1826 e, a partir daí o acervo acumula informações sobre escravidão, relações internacionais, declarações de guerras, sobre o voto feminino, relações homoafetivas, direito das crianças e idosos, distribuição geográfica do país, regulamentação de profissões, investigações sobre a atuação do Executivo, dos próprios membros do parlamento e de eventos de interesse coletivo. Ou seja, qualquer interesse que um pesquisador tem para entender o país pode ter algum tipo de informação no arquivo do legislativo.

ALGUMAS QUESTÕES SOBRE AVALIAÇÃO DE DOCUMENTOS DE ARQUIVO

Em relação à organização documental, como se estruturam as funções?

O nosso Plano de Classificação prevê 4 grandes funções finalísticas: legislação, fiscalização, representação e elaboração do orçamento. Entretanto, elas têm ramificações enormes, de modo que, no nível mais específico, buscou-se trabalhar com séries. Há um aspecto que destaco: nos dossiês de proposições, que são documentos compostos e avaliados como de valor permanente, há muitas peças sem qualquer relevância informacional. Por esse motivo, estamos avaliando se alguns poderiam ser eliminados, excluindo-os da composição do dossiê. O dossiê da proposição continua a ser considerado de valor permanente, mas isso requer o repensar de sua composição.

De qualquer forma, não é o arquivista que tem o voto de minerva. Os prazos e destinação são discutidos, à luz da legislação e das práticas das unidades produtoras.

Já existe precedente na literatura sobre esse tema. Por exemplo, o dossiê funcional é preservável por pelo menos 100 anos. Mas o que é o dossiê funcional? A vida funcional acondicionada numa pasta. Veja que na tabela do Conarq (quando existia) há definição de prazo de guarda para alguns documentos que, em várias instituições, compõem o dossiê funcional: lista de frequência, solicitação de férias, treinamentos. Assim, ao aplicar essa classificação e, consequente, temporalidade, é necessário retirar as séries específicas, destinando-as separadamente. Também, no processo legislativo que gera o dossiê das proposições, há documentos que são meramente operacionais, marcação de reuniões, indicação de substituição de relator etc.

Mas, coloco outra reflexão muito importante: o arquivista é apenas mais um componente da comissão de avaliação de documentos de arquivo, embora, no nosso caso, essa comissão seja presidida pelo Diretor da Coordenação de Arquivo, que é arquivista. De qualquer forma, não é o arquivista que tem o voto de minerva. Os prazos e destinação são discutidos, à luz da legislação e das práticas das unidades produtoras. Por fim, é analisada a coerência dos argumentos apresentados por todos e construído um entendimento coletivo que melhor represente os interesses gerais.

No caso dos dossiês de proposições, quando comparávamos o conteúdo dos que já estavam sob nossa custódia, víamos que possuíam documentos distintos. Em alguns casos, plenamente justificáveis, devido ao rito da tramitação, noutros não. Está em curso um levantamento visando padronizar a composição desses dossiês, o que chamamos de “processado”. Nos estudos quanto à implantação do processo legislativo digital6, há a previsão de um checklist que, em última instância, define a composição final do processado antes dele ser transferido ao arquivo intermediário e, nesse sentido, colaborar para garantir que o dossiê da proposição, seja um projeto de lei, uma proposta de fiscalização e controle, um requerimento de informação etc., esteja completo.

ACERCA DOS SISTEMAS DE ARQUIVOS DIGITAIS DO LEGISLATIVO

Os entes legislativos possuem um padrão de sistema de arquivos digitais?

Não há modelo de sistema para indicar para os entes legislativos, senão as Resoluções do próprio Conarq. Mesmo entre o Senado e a Câmara não existe um padrão. Embora ambas utilizem o e-Arq Brasil como referência, adotam soluções diferentes. O Senado utiliza a ferramenta privada Próton, da empresa Ikhon, customizado conforme suas necessidades. Enquanto isso, a Câmara dos Deputados selecionou em estudo interno os requisitos do e-Arq Brasil que desejava, fez uma licitação e contratou uma empresa para desenvolver uma solução a partir dos requisitos selecionados. A empresa ganhadora utilizou a ferramenta Nuxeo e cada funcionalidade proposta e homologada pelo Arquivo da Câmara. Além disso, apenas para ilustrar, a Câmara Legislativa do Distrito Federal usa o SEI. Só nesse breve exercício ilustrativo, já estão presentes três abordagens diferentes para a gestão de documentos digitais no legislativo.

A POLÍTICA ARQUIVÍSTICA COMO INTERESSE DE ESTADO E NÃO DE GOVERNO

Para finalizarmos essa nossa instigante conversa, o que você pode dizer, em síntese, sobre a política de arquivos no Brasil?

Os arquivos do legislativo são um exemplo do que os arquivos do país são. São os mesmos problemas, só que no escopo de um outro poder. Existe município que não tem arquivo e inúmeros que não tem arquivistas. Se uma Câmara de Vereadores funciona nas dependências da Prefeitura, como esperar que possua um arquivo efetivo? Como se sabe, o Conarq e as associações vêm tentando, a partir da legislação que obriga a administração pública a ter profissional de arquivo nas instituições, cobrar o respeito das instituições e isso tem resultado em algum sucesso no nível federal, mas não tanto no estadual e no municipal. Os nossos arquivos federais, sejam o Arquivo Nacional, os arquivos do Legislativo e do Judiciário, tem melhorado. Nos congressos e eventos da área a gente consegue debater e discutir iniciativas, mas nem sempre essa discussão resulta em alguma ação conjunta.

As mudanças de direção, principalmente, quando têm vinculação política podem resultar na descontinuação de projetos e políticas, não pelo mérito, mas por serem de linha divergente do que defende a nova direção.

Mas estamos tratando de instituições públicas e arquivos de instituições públicas, portanto, são entidades reféns dos ventos políticos. Todas essas instituições estão diretamente vinculadas ao governo em forma ampla, principalmente, para aquelas do Executivo, e aos interesses de seus diretores. As mudanças de direção, principalmente, quando têm vinculação política podem resultar na descontinuação de projetos e políticas, não pelo mérito, mas por serem de linha divergente do que defende a nova direção. Hoje há uma Diretoria que entende e respeita o fluxo de evolução das políticas arquivísticas, amanhã podemos ouvir que é “preciso jogar essa papelada fora e deixar tudo digital”, ignorando que, para que isso aconteça é preciso mobilização, estudos e ações monitoradas em todos os níveis hierárquicos da instituição. É por questões como essas que a política arquivística deve ser vinculada aos interesses do Estado, não dos governos e governantes de ocasião.

Nesse sentido, um dos principais problemas que o legislativo enfrenta, em âmbito nacional, é a alternância bianual nas Mesas Diretoras. Essas estruturas de Direção têm interesses particulares mais voltados às questões políticas e, quase nenhum reservado aos cuidados com a gestão de documentos e a preservação da memória do legislativo e, nesse sentido, com mais frequência do que seria o ideal, não aceitam o fato de que são transitórias, diferentemente do que representa a instituição que estão dirigindo.

Costumo dizer que “arquivo é antes de tudo uma questão política”…

Exatamente!


  1. Entrevista concedida a Marcelo Antonio Chaves, em 11 de março de 2022, por meio da rede Web. ↩︎
  2. EDITAL DE SELEÇÃO PÚBLICA CONARQ Nº 1, DE 28 DE ABRIL DE 2020. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/edital-de-selecao-publica-conarq-n-1-de-28-de-abril-de-2020-254457192 ↩︎
  3. CONARQ. PORTARIA Nº 116, DE 27 DE ABRIL DE 2020. Disponível em: https://www.gov.br/conarq/pt-br/assuntos/selecao-publica-de-conselheiros-do-conarq/comissao-de-selecao-publica ↩︎
  4. Vale ressaltar o verbo no passado. Com a criação de entidades como o Fórum das Associações de Arquivologia – Fnarq, a Reunião Brasileira de Ensino e Pesquisa em Arquivologia e do Fórum Nacional de Arquivos Municipais, ao menos em tese, passa a existir instâncias que podem ser usadas para promover os debates nesses segmentos e encaminhar propostas que realmente reflitam seus interesses. ↩︎
  5. O Interlegis é o programa do Senado Federal que objetiva fortalecer o Poder Legislativo estimulando a modernização e a integração das Casas Legislativas. Realiza sua missão principalmente por meio de transferência de tecnologia e ações de capacitação. Consultar: https://www12.senado.leg.br/interlegis/sobre/o-que-fazemos ↩︎
  6. Resolução nº 12 DE 2019. Estabelece o processo legislativo digital no âmbito da Câmara dos Deputados, e dá outras providências. ↩︎

Editoria