Pâmela de Almeida Resende: Decifrando a lógica de arquivamento dos documentos da polícia política

Pâmela de Almeida Resende: Decifrando a lógica de arquivamento dos documentos da polícia política

A historiadora Pâmela de Almeida Resende se dedica a vasculhar fontes documentais reveladoras dos mundos de personagens e grupos oprimidos da sociedade brasileira. Nesta entrevista ela conta detalhes deste trabalho e de sua experiência com arquivos.

Retrato colorido da pesquisadora Pâmela, uma jovem mulher de cabelo encaracolado preso, usando echarpe/estola azul.

Graduada e Mestre em História Social pela Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP. Doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo, USP com tese sobre o sequestro do embaixador Charles Burke Elbrick no Brasil em 1969. Realizou estágio doutoral na The New School University, New York, Estados Unidos, em 2017. Premiada no 2º Prêmio de Pesquisa Memórias Reveladas, no ano de 2012, com a publicação do livro “Os vigilantes da ordem: a cooperação DEOPS/SP e SNI e a suspeição aos movimentos pela anistia (1975-1983)”. Trabalhou como consultora da Comissão de Anistia e pesquisadora Júnior da Comissão Nacional da Verdade. É pesquisadora e integrante do Grupo de Estudos sobre Guerra Fria (CNPq/USP). E-mail: pamelaresende@yahoo.com.br

“É cada vez menos comum a noção de que o conhecimento do passado ocasionaria a sua não-repetição no futuro. Isso não significa, no entanto, não reconhecer a importância do estabelecimento de políticas de memória, sobretudo em sociedades recém-saídas de regimes ditatoriais. No caso brasileiro, uma das demandas em relação aos mortos e desaparecidos políticos é justamente a abertura e disponibilização à consulta pública dos arquivos da ditadura que ainda estão em poder das Forças Armadas, por exemplo. Esses documentos, assim como os milhares que já se encontram acessíveis, são fundamentais para a elucidação de histórias e trajetórias – individuais e coletivas, que ficaram pelo caminho”.

Nos arquivos do DEOPS/SP, a primeira experiência

Meu primeiro contato com o APESP foi ainda na graduação, quando comecei a me debruçar sobre o período da mais recente ditadura civil-militar no Brasil. Naquele momento (2008), para desenvolver minha pesquisa de Iniciação Científica, financiada pelo CNPq, sobre a repressão e vigilância aos movimentos pela anistia, fui pesquisar os documentos produzidos pelo DEOPS/SP, disponíveis à consulta pública desde 1994. Um dos primeiros passos da pesquisa foi justamente realizar um levantamento, até então inexistente, das fichas remissivas que me levassem a documentos que trouxessem informações sobre o olhar da polícia política sobre a luta pela anistia e seus integrantes, a partir da segunda metade da década de 1970.

Currículo repleto de arquivos

Durante toda minha trajetória acadêmica – da graduação até o doutorado – tive contato com acervos documentais depositados em diferentes instituições arquivísticas. Ainda na graduação, pesquisei no acervo DEOPS/SP, disponível à consulta pública no APESP. No mestrado, além do DEOPS/SP ampliei o escopo documental para outros acervos produzidos durante o período ditatorial, como o fundo do Serviço Nacional de Informações (SNI) e a Divisão de Segurança e Informações do Ministério da Justiça (DSI/MJ). Ainda nessa pesquisa, consultei também os fundos do Brasil: Nunca Mais e do Comitê Brasileiro pela Anistia, ambos depositados no Arquivo Edgard Leuenroth (AEL/UNICAMP). Já o doutorado, em função do tema da pesquisa – o sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick, fiz algumas viagens para acessar a documentação depositada em arquivos nos Estados Unidos, como o National Archives, em Maryland; o Richard Nixon Presidential Library and Museum, na Califórnia; e o Rockefeller Archive Center, em Nova York.

Mais recentemente, em projeto financiado pela UNESCO sobre o mapeamento e identificação de lugares de memória relacionados à presença negra na cidade de Campinas, fiz um exaustivo levantamento iconográfico em arquivos públicos e privados, como o Museu da Imagem e do Som, Arquivo Edgard Leuenroth, Espaço Cultural Urucungos, entre outros. De modo similar, em pesquisa ainda em fase de finalização para o Memorial da Resistência, sou responsável pela pesquisa documental sobre as múltiplas experiências relacionadas à vida negra na cidade de São Paulo desde o pós-abolição até os dias atuais.

Tal pesquisa incluiu arquivos como o APESP, Museu da Imagem e do Som, Instituto de Estudos Brasileiros (IEB/USP), Arquivo Edgard Leuenroth, Centro de Memória da UNICAMP, Biblioteca Nacional, Arquivo Nacional, entre outros.

Essa multiplicidade de arquivos contribuiu, sem dúvida, para aguçar ainda mais minha curiosidade sobre a importância do trabalho de gestão e preservação documental e todas as dificuldades envolvidas.

Produção de conhecimentos a partir do olhar dos órgãos de vigilância e repressão

A principal temática que pesquisei no APESP foi a da repressão e vigilância aos movimentos pela anistia na segunda metade da década de 1970. Para embasar esta investigação, me debrucei no fundo DEOPS/SP, sobretudo a série Dossiês (principal série documental desse acervo). A partir de entradas que podem ser tanto nominais quanto temáticas, foi possível acessar documentos variados, como livros, fotos, panfletos e atas de reuniões produzidos por pessoas ou movimentos que foram vítimas da vigilância estatal, além de documentos produzidos diretamente pelas forças de segurança como informes, pedidos de busca, relatórios dos agentes infiltrados etc.

Mais recentemente, fui contratada em caráter temporário pelo Memorial da Resistência para realizar uma pesquisa documental sobre a experiência negra ao longo do século XX na cidade de São Paulo. Sem dúvida alguma, a documentação depositada no APESP (DEOPS/SP, Iconográfico e Hemeroteca, por exemplo) foi fundamental para compreender parte da trajetória da comunidade negra em seus diferentes aspectos, inclusive a repressão estatal voltada para esses homens e mulheres.

  • Cartaz preto-e-branco chamando para "ATO PÚBLICO!" assinado pelo Movimento Negro Unificado"
    Cartaz convocando para um Ato Público de “Dia Nacional de luta contra o racismo”, organizado pelo Movimento Negro Unificado

A investigação em acervos dessa natureza permite não apenas a produção de conhecimento histórico acerca de determinados movimentos sociais e/ou pessoas que foram alvo de investigação, mas também uma visão geral do trabalho desses órgãos, de sua dinâmica interna e da lógica de produção da informação.

Durante a Iniciação Científica e o Mestrado, eu investiguei a vigilância e repressão de parte da comunidade de informações e segurança aos movimentos pela anistia na segunda metade da década de 1970. Naquele momento, as demandas dessas entidades, com destaque para o Movimento Feminino pela Anistia (MFPA) e o Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA) estavam concentradas em questões muito sensíveis para o regime, mesmo em tempos de abertura política. Para a lógica do Estado autoritário, os movimentos pela anistia eram vistos como lugares de discussão e articulação política, mas, sobretudo, de infiltração e disseminação de ideias consideradas “subversivas”. Tal concepção ocasionou a produção de extensos dossiês, no DEOPS/ SP e no SNI, com informações que dão conta das relações existentes entre os grupos e pessoas reunidas e articuladas em torno da bandeira da anistia e dos partidos de oposição ao regime. A busca pelos indícios, através de carimbos, anotações nos cantos das páginas e os silêncios apresentados, permitiu a recuperação dessa vigilância ao trazer à tona um período “não-canônico” da repressão, além de desmistificar a noção comumente divulgada de que os governos de Ernesto Geisel e João Figueiredo teriam sido “moderados” no que diz respeito à violência política. Violência essa que encontra mais continuidades do que rupturas em 21 anos de ditadura.

Decifrar os arquivos policiais para construir a narrativa

A maior riqueza da documentação produzida pelo DEOPS/SP consiste em apresentar a dinâmica da polícia política e a circularidade das informações, por meio dos relatórios dos agentes infiltrados.

Em razão da amplitude temporal do seu acervo, que compreende os anos de 1924 a 1983, é possível investigar o trabalho cotidiano de vigilância, repressão e controle social de um órgão que atuou durante boa parte da história republicana brasileira. Por isso, logo que comecei a pesquisar a documentação do DEOPS/SP, uma de minhas primeiras dificuldades foi decifrar a lógica de arquivamento dos documentos e o complexo código alfanumérico, no que diz respeito à série Dossiês. Depois desse primeiro passo, o desafio seguinte foi articular em uma narrativa toda a documentação levantada.

É cada vez menos comum a noção de que o conhecimento do passado ocasionaria a sua não-repetição no futuro. Isso não significa, no entanto, não reconhecer a importância do estabelecimento de políticas de memória, sobretudo em sociedades recém-saídas de regimes ditatoriais. No caso brasileiro, uma das demandas em relação aos mortos e desaparecidos políticos é justamente a abertura e disponibilização à consulta pública dos arquivos da ditadura que ainda estão em poder das Forças Armadas, por exemplo. Esses documentos, assim como os milhares que já se encontram acessíveis, são fundamentais para a elucidação de histórias e trajetórias – individuais e coletivas -, que ficaram pelo caminho.

Frutos decorrentes da pesquisa

Capa do livro Os vigilantes da ordem: a cooperação EOPS/SP e SNI e a suspeição aos movimentos pela anistia (1975-1983)", de Pâmela Rezende, com ilustração em preto-e-branco de escada informacional aplicada sobre foto de manifestação pela anistia com efeito alaranjado
Publicação: Arquivo Nacional

O livro “Os vigilantes da ordem: a cooperação DEOPS/SP e SNI e a suspeição aos movimentos pela anistia (1975-1983)”, Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2015 foi o resultado direto da minha dissertação de mestrado, premiado no 2º Prêmio de Pesquisa Memórias Reveladas1. Entre os artigos publicados em decorrência desse trabalho, destaco “En todas las dictaduras siempre hay espacios de resistencia frente a la opresión: A atuação dos movimentos pela anistia e o controle e vigilância do regime civil-militar (1975-1983)’, publicado pela Revista Tempo e Argumento2. Ainda em 2013, o Jornal da Unicamp publicou uma reportagem sobre o assunto intitulada “Abertura ‘lenta, gradual e segura’ teve repressão ‘ampla e irrestrita’”3. Meu livro foi tema de uma conversa na Univesp TV4.

Arquivo é espaço em disputa

Um arquivo não é apenas um espaço físico e, por isso mesmo, há tantas disputas políticas em jogo para o devido reconhecimento do seu valor e importância nas sociedades contemporâneas.

No caso dos chamados “arquivos da repressão”, essas questões mostram-se mais sensíveis, tendo em vista a existência de documentação considerável ainda em poder das Forças Armadas e a inação do poder público no sentido de trazer essa documentação à tona. Por outro lado, embora o país careça de políticas públicas efetivas no que diz respeito ao acesso aos documentos, é legítimo reconhecer os avanços nesse campo, como a Lei de Acesso à Informação, aprovada em 2011. Como sabemos, a ditadura civil-militar brasileira reconhecidamente produziu um número expressivo de documentos, então é necessário voltar a atenção também para os acervos já disponíveis à consulta pública, pois é a partir do esforço de salvaguarda documental que a pesquisa histórica lança novos olhares e perspectivas sobre o regime ditatorial.

Mergulhar na documentação e se despir de certezas e teorias

Já fui convidada algumas vezes para falar sobre minhas pesquisas em turmas de graduação e sempre gosto de iniciar a conversa sobre como se constrói um objeto de investigação e como a qualidade das perguntas que fazemos sobre determinado tema vai determinar o trabalho final. Além disso, uma condição indispensável para o trabalho do/a historiador/a é justamente a curiosidade e disposição para mergulhar a fundo nas fontes documentais. Sem dúvida alguma, o acesso à internet nos últimos anos tem facilitado a pesquisa documental, no entanto, a ida presencial ao arquivo continua sendo indispensável e reserva surpresas e descobertas impressionantes.

Mergulhar na documentação não é apenas sobre reunir o máximo possível de informações sobre determinado assunto, mas, sobretudo, se despir das suas certezas e teorias e estar disposto a “recalcular a rota”.

Panfleto preto-e-branco sobre a ANISTIA AMPLA, GERAL E IRRESTRITA" com 8 parágrafos e 8 itens de reivindicações, assinado pela seção Campinas do Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA)
Panfleto Comitê Brasileiro pela Anistia

  1. O Prêmio de Pesquisa Memórias Reveladas é um concurso de monografias com base em fontes documentais referentes ao período do regime militar no Brasil (1964-1985), de periodicidade bienal, instituído pela Portaria nº 95, de 19 de novembro de 2009, e alterado pela Portaria 072/2012, ambas da Direção-Geral do Arquivo Nacional. Disponível em: http://www.memoriasreveladas.gov.br/index.php/premio-memorias-reveladas ↩︎
  2. RESENDE. Pamela. “En todas las dictaduras siempre hay espacios de resistencia frente a la opresión”. A atuação dos movimentos pela anistia e o controle e vigilância do regime civil-militar (1975-1983) IN: Revista Tempo e Argumento, v. 5, n. 10, 2013 Disponível em: https://revistas.udesc.br/index.php/tempo/article/view/2175180305102013207 ↩︎
  3. RESENDE. Pamela. “Abertura ‘lenta, gradual e segura’ teve repressão ‘ampla e irrestrita’ In: Jornal da UNICAMP. Campinas, 09 de junho de 2013 a 15 de junho de 2013 – ANO 2013 – Nº 564. Disponível em: https://www.unicamp.br/unicamp/sites/default/files/jornal/paginas/ju_564_pagina_05_0.pdf ↩︎
  4. Livros: 133: Os Vigilantes da Ordem. Pamela Resende. Conversa. TV Cultura. Programa Arte e Cultura. Disponível em: https://www.youtube. com/watch?v=fp3dzb65sxw ↩︎

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