Rafaela Ferreira: Na cartografia e documentos textuais, a busca das divisas

Rafaela Ferreira: Na cartografia e documentos textuais, a busca das divisas

Matéria originalmente publicada em 16/12/2021

“Como instituições que mantêm sob a sua guarda registros que lançam luz sobre variados aspectos da ação do homem ao longo do tempo, os arquivos possuem um importante papel social, conformando espaços de cidadania.”

retrato de uma mulher jovem de cabelos escuros e pele clara com vestido florido

Rafaela Ferreira da Silva é doutora e mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP (2020), é especializada em História, Sociedade e Cultura pela PUC-SP (2012) e graduada em Turismo pela Universidade do Vale do Sapucaí (2009), instituição na qual participou do Programa Institucional Voluntário de Iniciação Científica (em História). Foi secretária municipal de Cultura e Turismo de Córrego do Bom Jesus, membro da diretoria estratégica do circuito turístico Serras Verdes do Sul de Minas Gerais e atuou como responsável pela comunicação oficial em língua italiana no projeto Gemellaggio (Cidades Irmãs), da Câmara Municipal de Cambuí. Desde 2011, trabalha na Prefeitura Municipal de Extrema, onde foi nomeada para ocupar os cargos de chefe de divisão de turismo, chefe de divisão de história, assessora geral e supervisora. Desde janeiro de 2017, é responsável pelo projeto História, pelo Acervo Digital Regional de Extrema e pelo projeto Memória Viva de Extrema. Atua também com questões relacionadas ao patrimônio arqueológico, com políticas públicas de cultura, cerimoniais, traduções, entre outras atividades. Em 2021, passou a prestar serviços de consultoria e assessoria. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9535289569224483 E-mail: ferreirasilva.rafaela@hotmail.com

Pesquisadora em arquivos e apaixonada pela história das Minas Gerais

Na condição de pesquisadora, como foi o seu primeiro contato no APESP?
O meu primeiro contato com o Arquivo Público do Estado de São Paulo foi realizado de forma virtual, através do site dessa instituição, em meados da década de 2010. O objetivo dessa ação foi conhecer inventários e informações sobre o funcionamento do referido arquivo – que conheci pessoalmente algum tempo depois. Por meio do atendimento de solícitos servidores do APESP, pude conhecer um pouco sobre o trabalho de alguns setores da instituição e uma amostra do seu acervo relacionada a temas do meu interesse. Destaco a atuação de Elzio Silva, geógrafo que me apresentou, nessa ocasião, vasta variedade de mapas de regiões que atualmente correspondem ao atual Sul de Minas Gerais e ainda valiosas referências bibliográficas. Muitos desses itens foram de suma importância para discussões promovidas na minha tese de doutorado e na exposição virtual intitulada “O Morro do Lopo e a Demarcação de Thomaz Roby (1749)”.

Por meio do atendimento de solícitos servidores do APESP, pude conhecer um pouco sobre o trabalho de alguns setores da instituição e uma amostra do seu acervo relacionada a temas do meu interesse.”

Fale um pouco da sua experiência em pesquisas em arquivos.
Como pesquisadora apaixonada pela história do atual Sul de Minas Gerais, já realizei levantamentos documentais em acervos de instituições do Brasil, de Portugal e da Itália. Graças ao trabalho dos atuais e de antigos servidores de muitas instituições, hoje é possível consultar acervos enormes sem sair de casa. Contudo, o trabalho presencial é muito prazeroso e sempre proporciona uma satisfatória interação com o objeto pesquisado.

  • Panorama do horizonte de uma região serrana com céu azul e vegetação verde escura
    Exposição organizada por Rafaela Ferreira, na cidade de Extrema-MG

Qual(is) temática(s) principal(is) você pesquisou no APESP? Cite alguns fundos, coleções e documentos acessados para sua pesquisa nesse Arquivo.
No Arquivo Público do Estado de São Paulo, realizei pesquisas relacionadas ao governo de Dom Luis Antonio de Souza Botelho Mourão e à bicentenária questão dos limites entre São Paulo e Minas Gerais. Graças ao trabalho desenvolvido por servidores dessa instituição, ao longo de sua existência, pude conhecer mapas que contêm representações do atual Sul de Minas Gerais (e de São Paulo), os livros de registro dos trabalhos de cravação de marcos limítrofes entre os Estados de São Paulo e Minas Gerais (1937), além de documentos transcritos em diversos volumes dos Documentos Interessantes para a História de São Paulo (publicados por iniciativa do Arquivo do Estado de São Paulo).
Dos documentos consultados, destaco dois mapas que possibilitaram discutir questões relacionadas à Questão de Minas Gerais, à restauração da autonomia política da Capitania de São Paulo e ao governo de Dom Luis na América Portuguesa, ou seja, a “Carta Chorografica da Capitania de S. Paulo em que se mostra a verdadeira cituação dos lugares por onde se fizerão as sete principaes divizoens do seu Governo com o de Minas Geraes”, de 1766” e o “Mappa da Capitania de S. Paulo em que se mostra tudo o que ella tinha antigamente thé o Rio Panana”, de 1773.1

Revisitando o período do governo do Morgado de Mateus

Fale um pouco da sua pesquisa mais consistente no APESP que produziu resultados. Do que ela trata? Qual abordagem?
A pesquisa mais consistente realizada com o suporte de documentos do Arquivo Público do Estado de São Paulo foi a minha tese de doutorado, desenvolvida sob a orientação da professora doutora Yvone Dias Avelino. Por meio da referida pesquisa, analisamos a atuação de D. Luis Antonio de Souza Botelho Mourão, Capitão-General e Governador de São Paulo, nos “interminaveis” e “odiozos” conflitos verificados entre São Paulo e Minas Gerais, entre 1765 e 1774. O recorte temporal dessa pesquisa inicia-se em 1765, quando o Morgado de Mateus (1722-1798) enviou militares para o descoberto do Rio Pardo (situado em uma área disputada por Minas Gerais e São Paulo) e se estende até 1774, ano em que o referido militar produziu a sua última missiva tratando da questão da divisão entre São Paulo e Minas Gerais. Nesse período, D. Luis Antonio idealizou e promoveu diversas iniciativas que objetivaram garantir a posse de áreas situadas na região oeste do Rio Sapucaí e obter a “restituição” de uma ampla região localizada ao sul do Rio Grande, atual Sul do Estado de Minas Gerais – regiões que o 4º Morgado de Mateus julgava serem detentoras de opulentas minas que, pelo direito de conquista, pertenciam aos paulistas.
Tendo como pano de fundo as disputas verificadas entre moradores e autoridades de Minas Gerais e São Paulo pela posse de descobertos situados na região oeste do Rio Sapucaí e o reavivamento das discussões sobre a Demarcação de Roby e acidentes geográficos que já haviam servido para balizar os limites entre vilas de São Paulo e Minas Gerais, analisamos a atuação de Dom Luis na Questão de Minas Gerais, buscando refletir sobre as práticas políticas sustentadas por esse nobre nessas disputas, bem como sobre aspectos do imaginário setecentista.

Fale um pouco sobre os tipos documentais que você encontrou e analisou referentes ao período do governo do D. Luis Antonio de Souza Botelho Mourão (Morgado de Mateus – sec. XVIII).
As principais fontes utilizadas na minha tese de doutorado foram documentos produzidos por Dom Luis, tais como: ordens, mapas, instruções, termos, e principalmente cartas remetidas a moradores e a diversas autoridades do Brasil e do Reino para tratar da Questão de Minas Gerais. Realizamos, assim, uma análise dos documentos administrativos produzidos pelo 4º Morgado de Mateus diante desses conflitos, à luz de uma abordagem cultural, buscando apreender a dimensão coletiva das suas produções.
Isso foi feito na medida em que realizamos um cotejamento dos conteúdos produzidos pelo 4º Morgado de Mateus com diversos documentos elaborados por autoridades da Capitania de São Paulo, do Estado do Brasil e do Reino, em uma perspectiva temporal que extrapola os anos compreendidos entre 1765 e 1774.
Estes são, sobretudo, requerimentos dos camaristas de São Paulo, representações de moradores da Cidade de São Paulo, alvarás, ordens régias e, finalmente, missivas trocadas entre autoridades civis e eclesiásticas do Reino e do Brasil envolvidos na dita questão.
Considerando que no contexto setecentista, a divisa da antiga Capitania de São Paulo era matéria que mobilizava moradores, autoridades locais e administradores do Reino e do Brasil, especialmente de Minas Gerais e de São Paulo, empreendemos buscas por documentos produzidos em diversas esferas da administração (da América Portuguesa e do Reino) que lançavam luz também sobre a atual região oeste do Rio Sapucaí (Estado de Minas Gerais). Tais levantamentos foram fundamentais para podermos tratar de aspectos até agora pouco considerados sobre a atuação de Dom Luis na América Portuguesa.

Você chegou a conhecer a exposição do APESP sobre o Morgado de Mateus? Se sim, o que você achou? Ajudou, de alguma forma na sua pesquisa?
A exposição “Em nome d’El Rey: 250 anos do governo Morgado de Mateus em São Paulo (1765-2015)” teve o mérito não somente de produzir conteúdos didáticos e materiais de apoio que possibilitaram uma reflexão sobre questões vistas na minha tese, mas ainda disponibilizou documentos que foram de grande utilidade para o estudo da atuação do 4º Morgado de Mateus na América Portuguesa.
Dos documentos exibidos nesse trabalho, destaco a importância, sobretudo, do documento 1 – “Cópia de Carta Instrutiva enviada pelo ministro de Estado Conde de Oeiras ao vice-rei Conde da Cunha, com diretrizes para a condução do governo da capitania de São Paulo” e do documento 2 – “Cópia de questionário elaborado por dom Luis Antônio e entregue ao Conde de Oeiras, com as respostas que o rei ‘ditara de sua própria voz’ e que foram escritas pelo ministro de Estado”

“Intermináveis e odiosos conflitos” entre São Paulo e Minas e os “carmelitas descalços

Fale de alguns dos produtos e resultados de suas pesquisas nos arquivos (dissertação, tese, artigos, livros, entrevistas, documentários, matérias jornalísticas etc.)
Até o presente momento, as minhas principais pesquisas realizadas no Arquivo Público do Estado de São Paulo resultaram na tese de doutorado intitulada “Práticas políticas e imaginário: a atuação do Morgado de Mateus nos “interminaveis” e “odiozos” conflitos verificados entre São Paulo e Minas Gerais (1765-1774)”, disponível em https://tede2.pucsp.br/handle/handle/23619, e na exposição virtual “O Morro do Lopo e a Demarcação de Thomaz Roby (1749)”, inaugurada pela Divisão de História da Prefeitura Municipal de Extrema, em fevereiro de 2021 – e disponível no seguinte domínio: https://www.extrema. mg.gov.br/siscultura/acervo/exposicoes-virtuais/.
Resultante de pesquisas realizadas em outros arquivos, destaco minha dissertação de Mestrado em História, defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em 2015. “Reforma Ultramontana e “il tanto vantato cattolicismo del Sul de Minas”: os Carmelitas Descalços na diocese de Pouso Alegre-MG (1911-1922)”.

Como você classifica a importância dos arquivos para a produção do conhecimento, para a cultura e para garantia de direitos?
Como instituições que mantêm sob a sua guarda registros que lançam luz sobre variados aspectos da ação do homem ao longo do tempo, os arquivos possuem um importante papel social, conformando espaços de cidadania. A implantação de sistemas informatizados, a disponibilização na internet de grande quantidade de documentos, a existência de servidores técnicos, a publicação de instrumentos que auxiliam na pesquisa, a promoção de eventos, entre outras iniciativas, são condições e ferramentas que
devem ser aproveitadas pelo cidadão e por pesquisadores.

Quais dicas você daria para um pesquisador que pretende iniciar suas pesquisas em arquivos?
Buscar informações sobre os arquivos que serão consultados, falar com pessoas que têm conhecimentos sobre a documentação pesquisada, ter paciência e persistência diante de obstáculos que possam surgir no início de levantamentos documentais, conceder grande atenção ao teor e às características dos documentos localizados, são algumas das dicas que deixo a pesquisadores que pretendem iniciar trabalhos em arquivos.

  1. 1 N.E. Texto em grafia original do século XVIII ↩︎

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