Felipe Bueno Crispim: História ambiental e os silêncios de um arquivo

Felipe Bueno Crispim: História ambiental e os silêncios de um arquivo
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O historiador Felipe Bueno Crispim compartilha sua experiência de pesquisa envolvendo documentos relacionados ao patrimônio ambiental no acervo APESP, especialmente processos de tombamento e atas do conselho deliberativo do Condephaat, mas também em mapas do nstituto Geográfico e Cartográfico (IGC) e Comissão Geográfica e Geológica (CGG).

Licenciado em História pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), mestre em História pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Atuou como pesquisador e documentalista em projetos de identificação, inventário e preservação de acervos documentais e patrimônio cultural. Foi consultor da Diretoria de Patrimônio Artístico e Cultural de Jundiaí. É autor do livro Entre a Geografia e o Patrimônio: estudo das ações de preservação das paisagens paulistas pelo Condephaat (1968-1989), Fapesp/EdUFABC (2016) e membro dos Grupos de Trabalho da Associação Nacional de História ANPUH História Ambiental e Patrimônio Cultural e Memória. Atualmente é doutorando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) na linha de pesquisa Visualidades, Políticas de Memória e Questões do Contemporâneo.

Na condição de pesquisador, como foi o seu primeiro contato no Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP)?

Meu primeiro contato com o Arquivo do Estado se deu em 2009 quando cursava o terceiro ano da graduação em História na Universidade Estadual Paulista (Unesp) Campus Assis, cidade da região do Vale do Paranapanema, a 445 quilômetros da capital.

Na época comecei a desenvolver, sob a orientação da professora Célia Reis Camargo, uma pesquisa de iniciação científica (IC) sobre as práticas do Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado) na proteção das paisagens paulistas. Naquele ano o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) tinha acabado de instituir a Chancela da Paisagem Cultural, que é um novo instrumento de preservação do patrimônio cultural para além do tombamento e do registro, o que motivava pesquisas sobre paisagem e paisagem cultural no âmbito regional e local; acredito que tenha sido das primeiras pesquisas sobre esse tema no âmbito paulista.

A consulta ao APESP foi feita em julho daquele ano, durante as férias em São Paulo.

Não fazia ideia de que tipo de documentação poderia encontrar nos acervos do APESP e o atendimento preciso e atento dos funcionários foi fundamental, pois um tema bastante incomum à rotina de atendimento deles, foi tratado com muito interesse e prontidão.

Acabei passando uma semana por lá pesquisando na Hemeroteca e nos mapas da Comissão Geográfica e Geológica (CGG), que tinham acabado de ser recolhidos ao APESP. Nunca havia tido contato com documentação cartográfica antes e pouco sabia como utilizá-la, era tudo muito novo para mim.

Fale um pouco da sua experiência em pesquisas em arquivos.

A minha primeira experiência com arquivos foi na faculdade, fui estagiário do Centro de Difusão e Apoio à Pesquisa (CEDAP) da Unesp, no que hoje é o Programa de Formação na Área de Acervos da instituição. Fui do grupo de estagiários que trabalhou na transferência de todo o acervo para o prédio novo, que só foi inaugurado em 2012, quando eu já havia me formado.

Fui também estagiário do Centro de Documentação e Memória (CEDEM) da Unesp, onde trabalhei na catalogação do fundo da Editora Oboré, que havia acabado de ser recolhido. Posteriormente fui trabalhar no CEDEM e passei a atuar profissionalmente em projetos de inventário e catalogação de acervos na cidade de São Paulo, entre eles o próprio APESP, onde trabalhei entre 2015 e 2016.

Ao ingressar no mestrado em História na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) dei continuidade à pesquisa desenvolvida na IC procurando aprofundar o conhecimento sobre o tombamento de áreas naturais em São Paulo como a Serra do Mar, a Serra do Japi, da Cantareira, entre outras áreas que haviam sido tombadas pelo Condephaat nos anos de 1980 e acabei conhecendo o acervo da Unidade de Preservação do Patrimônio Histórico (UPPH) que é o braço administrativo do Condephaat. Acredito que tenha sido esse o acervo em que mais pesquisei até hoje.

Li e fotografei mais de 30 processos de tombamento e fiz uma incursão pela mapoteca e pelos relatórios de gestão dos antigos presidentes do órgão.

Quando pesquisava lá, o acervo estava em condições muito degradantes, estava mesmo sob risco de perda, mas os processos de tombamento compunham uma série que estava em melhores condições de pesquisa. Essa série foi posteriormente quase toda digitalizada e recolhida ao APESP em 2021 junto à série “Atas do Conselho Deliberativo” graças aos esforços de funcionárias aguerridas da UPPH.

 Quais temáticas pesquisou no APESP? Cite fundos, coleções e documentos acessados nesse Arquivo.

Minha temática de pesquisa se insere no âmbito da história ambiental e do patrimônio cultural, a história da paisagem e, no meu caso da Serra do Mar em São Paulo, envolve pensar as relações entre natureza e cultura e como elas se deram ao longo do tempo. Essas relações têm uma historicidade própria que precisa ser pensada a partir de uma abordagem historiográfica.

Por conta da singularidade dessa temática, minha busca no acervo do APESP nunca foi fácil, mas foi justamente a grande diversidade de tipos documentais dos fundos e coleções do APESP que me permitiu encontrar muitos documentos interessantes.

Comecei pelo acervo da Comissão Geográfica e Geológica onde encontrei a “planta do litoral do estado de São Paulo entre a Praia de Itamumbuca até a Ponta da Trindade” de 1911 na escala de 1:50000, que compreende uma faixa das praias do município de Ubatuba, com sua hidrografia e curvas de nível, que é um registro interessante da paisagem do litoral norte paulista.

Já nos documentos do Instituto Geográfico e Cartográfico (IGC) encontrei o mapa “Serra do Mar e Rio do Braço”, um documento cartográfico de 1941 que compreende a região do Vale do Paraíba na divisa com estado do Rio de Janeiro, local onde as Serras do Mar e da Bocaina se encontram. A raridade desse documento se refere principalmente aos itens cartografados – o “caminhos de tropas”, “rios e ribeirões”, “córregos”, “grotas”, “cachoeiras” e “corredeiras” que permitem documentar níveis do território pouco encontrados nos mapas da época que eram muito voltados às obras públicas.

papel envelhecido com mapa colorido
Acervo APESP, código BR_APESP_IGC_IGG_CAR_I_B_0003_001_001

No caso do mapa em destaque existe essa singularidade em se cartografar antigos caminhos de tropas da região das Serras do Mar e da Bocaina que ainda se encontravam ativos na década de 1940 assim como a hidrografia com esse foco para os pequenos rios e para cachoeiras numa zona de limite entre estados.

Ainda no acervo do IGC a “Planta geral de situação do primeiro perímetro de Caraguatatuba” que é de 1950, mas foi feito a partir de um mapa da Marinha de 1937, mostra o limite entre a mancha urbana dos municípios de Caraguatatuba e de São Sebastião e a Serra do Mar possibilitando análises comparadas com mapas recentes para se documentar o avanço da zona urbana desses municípios sobre a Serra do Mar, fenômeno que passa a ocorrer com mais intensidade a partir da construção da rodovia Rio-Santos nos anos de 1970.

Acervo APESP. Cód. ref: BR_APESP_IGC_IGG_CAR_I_C_0048_001_001

Descreva sua pesquisa mais consistente no APESP e quais resultados esperados. Do que ela trata? Qual abordagem?  Fale sobre dificuldades e estratégias na busca de documentos relacionados aos temas pesquisados e como esses documentos deram suporte à pesquisa.

A pesquisa mais consistente e mais recente no acervo do APESP foi para o doutorado que venho desenvolvendo na Unicamp, sob a orientação da professora Aline Vieira de Carvalho. A tese trata do processo de patrimonialização da Serra do Mar em São Paulo pelo Condephaat. Esse processo começa nos anos de 1970 com a construção das rodovias Imigrantes e Rio-Santos e com as grandes transformações que começam a se dar em toda a Serra, ocasionadas também pelo crescimento desfreado das regiões metropolitanas de São Paulo e da Baixada Santista. É o momento de criação do Parque Estadual da Serra do Mar (PESM) e do tombamento estadual (1985).

No APESP pesquisei o fundo do Condephaat que se compõe de um conjunto de documentos recentemente recolhidos, entre eles processos de tombamento, de intervenção em áreas tombadas e a série Atas do Conselho Deliberativo.

Considero as Atas do Conselho uma série bastante diferencial, pois são documentos que dificilmente saem da instituição quando ocorre o recolhimento de uma massa documental.

Fotografei quase 40 anos de atas entre 1969 e 1997 e essa tem sido uma importante contribuição para a pesquisa, já que tenho podido compreender melhor a rede de agentes envolvidos com o tombamento da Serra do Mar e com a atuação mesma do Condephaat na preservação de áreas naturais.

Foi muito interessante encontrar numa ata de março de 1983 o relatório de gestão do professor Aziz Ab’Saber, geógrafo da USP que presidiu o órgão entre 1982 e 1983.

Consta que Ab’Saber pediu para que o relatório de sua gestão fosse transcrito na íntegra em ata, demostrando a consciência da preservação da memória e do devir do tempo, já que entre os documentos de uma instituição as atas tendem a ter maior permanência no tempo, mesmo quando ela é extinta, como é o caso de muitos órgãos públicos do mesmo período.

Ainda quero pesquisar o fundo da Dersa (Desenvolvimento Rodoviário S/A), pois acredito que lá possa encontrar novas imagens da Serra do Mar dos anos de 1970 e 1980 quando da construção da rodovia dos Imigrantes. Do mesmo modo gostaria muito que acervos da Secretaria do Meio Ambiente, do Instituto Florestal e do Geológico pudessem ser recolhidos ao APESP, pois acredito que seja a única forma de se garantir um acesso efetivo aos arquivos do meio ambiente, como por exemplo da implantação do Parque Estadual da Serra do Mar.

Qual impacto da pandemia em relação às pesquisas nos arquivos nesse período?

A pandemia teve um grande impacto sobre a minha pesquisa, já que o período previsto para levantamento de fontes foi justamente o ano de 2020. Nessa época cheguei a duvidar se conseguiria dar prosseguimento ao doutorado em meio a tantas dificuldades. Foi um período obscuro e triste do ponto de vista ético e político em que a democracia esteve gravemente ameaçada.

- Faça um rápido paralelo sobre as condições de pesquisas no APESP em relação a outros arquivos ou locais de pesquisa.

Acho que o principal paralelo que poderia fazer é em relação à pesquisa na UPPH/Condephaat e no APESP. Quero deixar registrado que sempre fui muito bem atendido pelos profissionais da UPPH, que são pessoas brilhantes, mas as condições de acesso ao acervo até para os próprios funcionários são realmente complicadas. O grande diferencial do APESP a meu ver é o fato dele ser por definição uma instituição de pesquisa e de garantia do acesso à informação. Essa não é a realidade dos arquivos públicos no Brasil.

Como você classifica a importância dos arquivos para a produção do conhecimento, para a cultura e para garantia de direitos?

O acesso à informação é um direito básico de qualquer cidadão numa democracia, ele é equiparado ao direito à cultura, ao meio ambiente, à memória e à qualidade de vida, garantidos pela nossa Constituição de 1988. Essa premissa constitucional é muito recente no Brasil, passamos por duas ditaduras e nossa primeira lei de arquivos (Lei 9159/91) é de 1991.

A professora Célia costuma dizer que para destruir os arquivos no Brasil não é preciso muito esforço, basta deixá-los como estão, deteriorados e desconhecidos. Isso é um projeto político que está na longa duração da história do Brasil Republicano.

Que dicas você daria para um pesquisador que pretende iniciar suas pesquisas em arquivos?

Minha dica é a de não desistir nunca.

Em um arquivo nada é obvio e muitas vezes a gente precisa olhar para os silêncios e para os “não ditos”, para documentar as singularidades e a agência humana, que são o objeto da história e, por que não, a agência dos “não humanos”, se pensarmos numa abordagem mais atual da história ambiental.

Fique à vontade para apresentar produtos e resultados de suas pesquisas (dissertação, tese, artigos, livros, entrevistas, documentários, matérias jornalísticas etc.)

Crispim, Felipe Bueno. Entre a Geografia e o Patrimônio: estudo das ações de preservação das paisagens paulistas pelo Condephaat (1969-1989). Ed. UFABC/Fapesp: São Bernardo do Campo, 2016.

Confira aqui algumas imagens citadas na entrevista:

  • "Serra do Mar e Rio do Braço” IGC, 1941
  • Serra do Mar e Rio do Braço” IGC, 1941 Acervo: APESP. Cód. ref: BR_APESP_IGC_IGG_CAR_I_B_0003_001_001
  • lanta geral de situação do primeiro perímetro de Caraguatatuba, 1950. Acervo APESP. Có. ef: BR_APESP_IGC_IGG_CAR_I_C_0048_001_001
  • Destaque do título do mapa, escrito em marrom escuro sobre papel creme, complementado pelo texto “Organizada pelos peritos da vistoria com elementos do mappa da marinha do Brasil, ano 1937, documentos e mapas dos autos da vistoria e observações feitas no local. Escala = 1:50.000. São Paulo para S. Sebastião"
    Acervo APESP. Có. ef: BR_APESP_IGC_IGG_CAR_I_C_0048_001_001
  • Folha creme com traços pretos de um mapa de relevo com detaques para a enseada de Caraguatatuba a esquerda, a serra do Mar acima e o rio Camburu ao centro
    Detalhe da Planta geral de situação do primeiro perímetro de Caraguatatuba, IGC, 1950
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