Memória do Mundo da Unesco e o fundo da Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos
Matéria originalmente publicada em 23/10/2017
Parte expressiva das culturas dos povos está gravada em seu patrimônio documental, e esta, independente da nação, fica armazenada em bibliotecas, museus, arquivos e nos mais diversos locais de custódia espalhados pelo mundo. Essa informação documental é uma das formas privilegiadas para se perpetuar memórias coletivas em todas as partes. E mesmo com toda essa carga de importância, ainda hoje, existe uma grande perda de documentação histórica, seja pela má conservação, por fatores políticos, por dissociação acidental e até mesmo por guerras e conflitos sociais. Inúmeros fatores colocam “em cheque” a memória de um povo e, consequentemente, a memória do mundo.
A preocupação com a conscientização e a busca por soluções para reverter essa situação levou a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco, na sigla em inglês) a criar o que se chamou Programa Memória do Mundo. O programa tem por objetivo atuar junto a governos, organizações e fundações internacionais pondo em prática planos de ações que visam desenvolver projetos pautados nas principais estratégias fundamentais do Programa: a identificação de patrimônio documental, conscientização, preservação, acesso, estruturas, status e relações.
Após a implementação do Programa, percebe-se que há a necessidade de aproximar seus ideais de cada país, com isso, criam-se Comitês Regionais (continentais) e Nacionais, responsáveis pela a atuação mais intensiva em cada região e em suas entidades detentoras de documentações públicas ou particulares que necessitam de maiores cuidados e divulgação. O primeiro passo é identificar as coleções documentais e sua importância para a humanidade. Identificados, esses acervos documentais são registrados pelo Comitê Consultivo Internacional e endossado pela diretora-geral da Unesco. Segundo o site da entidade, o Registro da Memória do Mundo é o aspecto de maior visibilidade pública do Programa Memória do Mundo.
Pensando nisso e com todas essas informações, o Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP), reduto de grande acervo documental, fundos e coleções valiosíssimos, emprenha-se em conquistar, pouco a pouco, o Registro Memória do Mundo para o seu acervo. Até o momento o Arquivo Público possui cinco conjuntos documentais com o título de Patrimônio da Humanidade. São eles:
- Arquivo da Secretaria de Governo da Capitania de São Paulo (1611-1852)1;
- O jornal abolicionista “A Redempção” (1887-1899)2;
- Livros de Registro/Matrícula dos Imigrantes (1882-1962)3;
- Arquivo do Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo (1964-1985)4;
- Arquivo da Comissão Teotônio Vilela (1983-2016)5.
O tema desta edição é justamente o mesmo em que a Comissão Teotônio Vilela (CTV) atuou durante sua existência. A CTV foi uma entidade não governamental que atuou na luta pelos Direitos Humanos. Nasceu em 1983 e tinha como membros uma relação de notáveis intelectuais, políticos e jornalistas. Contribuiu para a redemocratização do país e pela inserção dos direitos humanos no âmbito estatal. Na década de 1990, auge de sua militância, ampliou seus objetivos e fortaleceu uma rede internacional de organizações influentes nesta causa.
É possível obter maiores detalhes históricos desta famigerada e importantíssima Comissão através de sua documentação, disponível ao público, nos salões de pesquisa do APESP. São cerca de 171 caixas que acondicionam aproximadamente 15 mil documentos textuais, dentre eles: documentos administrativos, relatórios de visitas às casas de detenção, formulários de denúncias, textos e artigos acadêmicos, folhetos, recortes de jornais etc; 108 documentos sonoros e 52 documentos audiovisuais e tridimensionais. Esse montante e toda a carga histórica que essa documentação carrega é, além de memória de nosso país, material de pesquisa acadêmica para pesquisadores que têm como objeto de pesquisa a temática dos direitos humanos. Toda essa documentação foi doada ao APESP em 2013, por iniciativa da própria Comissão, anteriormente, os documentos estavam sob custódia do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo.
Por estas razões o fundo da Comissão Teotônio Vilela alcançou o reconhecimento com o registro nacional no programa Memória do Mundo. A Unesco, mais uma vez levou em consideração a característica ímpar de uma coleção pertencente ao Arquivo Público do Estado de São Paulo, e com isso, traz luz a nossa história, à instituição e principalmente ao fundo da Comissão Teotônio Vilela.
Fonte: http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/communication-and-information/access-to-knowledge/documentary-heritage/#
Veja aqui o certificado concedido pela Unesco e imagens de alguns documentos que compõem o fundo CTV no APESP:
Confira a descrição de cada conjunto custodiado pelo APESP que é Memória do Mundo:
- Arquivo da Secretaria de Governo da Capitania de São Paulo (1611-1852) – fundo SEGOVC APESP com registro nacional no programa Memória do Mundo da Unesco reconhecido em 2015:
O arquivo da Secretaria de Governo da Capitania de São Paulo é um dos raros acervos coloniais a manter preservada sua ordenação original, em maços e livros, além de reunir uma rica documentação de suma importância para a compreensão da história de São Paulo, do Brasil e do Império português na América. A Secretaria de Governo é a mais antiga repartição pública do Estado de São Paulo, criada para dar suporte aos capitães-generais designados para governar terras distantes em nome do rei. É um acervo de valor inquestionável para a história de São Paulo, Santa Catarina, Paraná e de outros estados, e para compreender a formação dos arquivos no Brasil. Trata-se de um acervo único para o estudo do “viver em colônia” e para o conhecimento sobre a natureza, formas de organização, conteúdo e uso dos documentos administrativos no espaço colonial, entre 1721 e 1823. Fonte: Base de dados do Comitê Nacional do Brasil do Programa Memória do Mundo da Unesco ↩︎ - O jornal abolicionista “A Redempção” (1887-1899) – parte do fundo IHGSP APESP com registro nacional no programa Memória do Mundo da Unesco reconhecido em 2014:
Coleção de 135 exemplares deste periódico que foi publicado com regularidade entre janeiro de 1887 e maio de 1888 na cidade de São Paulo, de forma bissemanal. Depois dessas datas ainda foram editados alguns poucos números em caráter comemorativo. A coleção corresponde à quase totalidade das edições do jornal, que é documento elementar para se compreender o movimento abolicionista na capital paulista. Muitos historiadores o reconhecem como representante das ideias do grupo abolicionista radical denominado “Ordem dos Caifazes”, liderado pelo também redator-chefe da folha, Antonio Bento de Souza e Castro. A temática central dessa folha é a abolição da escravidão, abordando e discutindo diferentes métodos para se conquistar tal objetivo. A escravidão foi uma instituição que permeou todas as esferas da sociedade brasileira por mais de três séculos. O jornal, nesse sentido, também aborda questões coadunadas à escravidão, tal como a “moral” de uma população crescida sob esse regime, a educação, a política dos diferentes partidos, a conduta do imperador, o latifúndio, a religião, a polícia, a imigração, o desenvolvimento nacional e até o desejo de tornar independente a província de São Paulo. Fonte: Base de dados do Comitê Nacional do Brasil do Programa Memória do Mundo da Unesco ↩︎ - Livros de Registro/Matrícula dos Imigrantes (1882-1962) – parte do fundo SEPROS APESP com registro nacional no programa Memória do Mundo da Unesco reconhecido em 2009:
O conjunto dos Livros de Registro de Imigrantes é composto por 150 livros abrangendo o período de 1882 a 1962, onde estão registrados os grupos de todos os imigrantes entrados na Hospedaria com informações de nome, parentes agregados, idade, local de origem, porto de embarque, profissão e quantia em dinheiro que traziam e, finalmente, o seu local do destino. Ali também está registrado se o imigrante vinha na condição de contratado ou era imigrante espontâneo.
Submissão realizada pelo Memorial do Imigrante (atual Museu da Imigração), onde o conjunto e toda a documentação produzida/acumulada pela Hospedaria de Imigrantes estava custodiada na época. Em 2010 o conjunto foi recolhido para guarda no APESP e incluído no fundo da Secretaria da Promoção Social (SEPROS). Fonte: Base de dados do Comitê Nacional do Brasil do Programa Memória do Mundo da Unesco ↩︎ - Fundos da Rede de Informações e Contrainformação do regime militar no Brasil (1964-1985), incluindo o Arquivo do Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (DEOPS-SP) – parte do fundo SSP APESP com registro internacional no programa Memória do Mundo da Unesco reconhecido em 2011:
Esse conjunto único e insubstituível de 17 fundos é essencial para construir a história dos regimes de exceção na Amárica Latina na segunda metade do século 20 e para a proteção dos direitos humanos. Uma fonte indispensável para o conhecimento das políticas e ações do governo militar. A historiografia brasileira desse período, restrita por tanto tempo a documentos de militantes de organizações clandestinas e arquivos pessoais, agora pode ser incrementada por pesquisas baseadas em novos documentos, objetos e abordagens. Estão abrangidas informações produzidas pela rede de informação e contrainformação do regime militar no Brasil (1964-1985) que hoje estão sob custódia de diversas instituições arquivísticas públicas do país. Tem vínculos com outros países latino-americanos que também passaram por regimes de exceção, como Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai. A proposta foi submetida pelo Arquivo Nacional brasileiro em parceria com nove arquivos públicos estaduais (CE, ES, GO, MA, MG, PE, PR, RJ, e SP) contendo a documentação produzida e acumulada por órgãos federais e estaduais d vigilância política, incluindo o arquivo do Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo (DEOPS-SP), que faz parte do fundo da Secretaria de Segurança Pública do acervo APESP. Fonte: Programa Memória do Mundo da Unesco ↩︎ - Arquivo da Comissão Teotônio Vilela (1983-2016) – fundo CTV APESP com registro nacional no programa Memória do Mundo da Unesco reconhecido em 2016:
História da luta dos direitos humanos no Brasil, a CTV foi uma organização não governamental fundada em São Paulo em 1983, durante o período de transição democrática, e que teve existência legal até 2016. A entidade foi pioneira em ações voltadas para positivar o respeito aos direitos humanos, redirecionando a atenção do tema para a população mais vulnerável e marginalizada, que era vítima de ações repressivas por parte do Estado. A Comissão se destacou ainda pelo prestígio político e intelectual de seus membros, além de ter sido uma importante escola para a militância dos direitos humanos, principalmente após a década de 1990, quando ampliou suas atividades e ajudou a fortalecer uma rede internacional de organizações atuantes desta causa. A CTV é um acervo único e de importância histórica singular para a compreensão da construção democrática no Brasil, sobretudo no período em que a Comissão teve grande atuação, de 1983 a 2010. Os documentos produzidos e acumulados pela CTV servem de prova dessa trajetória e são fontes privilegiadas para pesquisas relacionadas com a história dos direitos humanos e sua inserção no âmbito jurídico e político da sociedade brasileira. Fonte: Base de dados do Comitê Nacional do Brasil do Programa Memória do Mundo da Unesco ↩︎