Quem vê caixa, não vê organização

Quem vê caixa, não vê organização

Maria Fernanda Mendes e Freitas1
Renata Fernandes Veloso Baralle2

Quando falamos da organização de arquivos, o resultado que os clientes costumam ter em mente é de seus documentos guardados em caixas coloridas, etiquetadas e enfileiradas ao longo das estantes. No entanto, por mais que o vislumbre da padronização salte aos olhos, precisamos alertá-los do trabalho que torna isso possível: o estudo prévio, a metodologia empregada e o entendimento do contexto de produção e organização da massa documental.

Poderíamos dizer que por trás de toda estante organizada há um longo e árduo trabalho de desenvolvimento de um “invisível” quadro de arranjo.

Os estudos para a constituição de um quadro de arranjo são complexos e podem gerar inúmeros resultados. Já em sua 7ª versão, o quadro de arranjo do arquivo do “arquiteto”3 exigiu uma pesquisa extensiva tanto de sua longa trajetória profissional quanto do contexto de produção e reordenamentos que seu arquivo sofreu ao longo do tempo. O arquiteto e engenheiro se formou na década de 40 e teve uma trajetória exemplar, mas relativamente pouco conhecida em sua atuação na arquitetura hospitalar. Além de seus projetos arquitetônicos, ele foi precursor no desenvolvimento de pesquisas e inovações técnicas que facilitaram e nortearam normas estabelecidas para área da Saúde.

A constituição do sistema de arranjo para o acervo em questão partiu de uma análise dos paralelos entre sua intrincada vida pessoal, acadêmica e profissional. Iniciamos o trabalho pela avaliação de uma complexa massa documental produzida ao longo de sua vida e identificamos seus trabalhos realizados, convites para participação em eventos e estudos desenvolvidos. Além disso, também encontramos documentos que o atestam sua atuação como empresário e consultor de referência na área de arquitetura de hospitais.

Nesse processo, tivemos o devido cuidado em entender as funções, os trabalhos desenvolvidos e a documentação que o instituto que carrega seu nome armazena. A partir desse estudo, conseguimos desenhar 3 (três) fundos e, com essas definições, chegamos à construção de um arranjo com um controle físico e intelectual de acesso aos documentos. Desta forma, conseguimos empregar uma organização adequada às necessidades dos usuários e representativa aos produtores e ao fundo.

Transpor essa organicidade ao arranjo do acervo está sendo um desafio, já que ao longo do tempo foram realizados “recortes” dentro da massa documental por diversos motivos – mudanças de locais do acervo, encerramentos de atividades e das empresas (com o não recolhimento correto da documentação), avaliação e necessidade de descarte em virtude do estado de conservação, ou até por políticas de arquivos, questões institucionais etc. Diante de acervos pessoais também contam escolhas da família, o que vem a ocasionar eventuais perdas de documentos. Aqui vale um adendo: no acervo do “arquiteto” é quase impossível separar sua vida pessoal da vida profissional. Ao longo do trabalho, encontramos correspondências dele para amigos e até mesmo para familiares, além de anotações pessoais feitas por ele em livros da sua biblioteca pessoal. Desta forma, além do arquivo do seu escritório de arquitetura nos deparamos com sua formação e os estudos que o acompanharam ao longo de sua trajetória.

Diante disso, cabe destacar que os documentos recolhidos e posteriormente tratados podem não refletir plenamente a intencionalidade de seu criador, conforme preconizam as normas arquivísticas. Portanto, por mais que tentemos remontar à vida e sua trajetória, às funções do Instituto ou da constituição da empresa e seus fluxos documentais, podemos nos deparar com dispersões ou lacunas que não serão possíveis recuperar.

A implementação do sistema de arranjo para o acervo do “arquiteto” é resultado de esforços realizados por uma equipe de profissionais da área de Arquivologia e Biblioteconomia, que com seu embasamento técnico e teórico desenvolveu metodologias para o tratamento do arquivo do arquiteto. Atualmente, o trabalho se baseia em uma sistematização técnica proveniente da teoria da Arquivologia e, por extensão, das normativas emanadas pelos órgãos de grande reconhecimento em âmbito estadual e federal (Conarq/Nobrade para a descrição arquivística), para a entidade custodiadora do acervo arquivístico.

Assim sendo, para fundamentar a organização dos documentos do arquivo do arquiteto, foram estabelecidas séries, dossiês, seções e identificação documental, bem como a destinação física da ordenação dessa documentação no espaço físico. Procura-se, neste projeto, seguir uma ordem metodológica e prática, respeitando os limites e as possibilidades no conjunto documental do presente acervo.

A apresentação para a instituição do sistema hierárquico de arranjo está em constante atualização, uma vez que o projeto está em andamento e alguns desdobramentos da construção de seções, séries, dossiês estão sendo acrescentados, excluídos, substituídos e/ou juntados ao documento que está sendo confeccionado para disponibilização futura aos pesquisadores deste acervo.

Para esta Seção da Revista do Arquivo Público do Estado de São Paulo, em sua 15ª edição, a partir do nosso relato ressaltamos da importância do contato imersivo com a documentação armazenada, abrindo a possibilidade de diferentes leituras à medida em que avançam as atividades de organização e análise documental. Para nos adequarmos à compreensão cada vez mais detalhada dos documentos, a fim de construir a ponte entre o usuário e a informação, trabalhamos em ajustes constantes do sistema de arranjo para que reflitam da maneira mais coerente possível a lógica de produção do Instituto e de seu fundador, e representar da melhor forma cada passo e possibilidade de estudo junto ao presente acervo.


  1. Arquivista formada pela Universidade Estadual Paulista, é fundadora e sócia da Saber – Gestão da Informação e do Conhecimento, São Paulo – SP – Brasil. E-mail: mafer.mfreitas@gmail.com ↩︎
  2. Bibliotecária formada pela Universidade de São Paulo, é Sócia da Saber – Gestão da Informação e do Conhecimento, São Paulo – SP – Brasil. E-mail: baralle@gmail.com ↩︎
  3. [N.E.] Por questões de sigilo, as autoras preferiram não citar os nomes do arquiteto em questão e do instituto que custodia seu acervo, ↩︎

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