Fernando Atique: Arquivos são imprescindíveis nos discursos contidos nas pedras das cidades
Matéria originalmente publicada em 12/6/2020
Primeiro contato no APESP: pesquisar ferrovias e núcleos coloniais
Em 1998, eu comecei uma bolsa de Iniciação Científica financiada pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) sobre o Edifício Esther, considerado marco da arquitetura moderna em São Paulo, orientado pela Professora Telma de Barros Correia. Eu estava interessado não apenas na arquitetura do prédio, mas na história dos “porquês” São Paulo ter um prédio daqueles ainda nos anos 1930. Isso me levou a procurar a história da família que construiu o prédio. Descobertos, passei a pesquisar o clã de José Paulino Nogueira, cafeicultor, usineiro e empresário ferroviário da região de Campinas. Fui atrás de documentos sobre os empreendimentos de várias ordens que eles tiveram. Vim parar no Arquivo do Estado atrás de documentos sobre ferrovias e sobre os núcleos coloniais montados pelo Estado de São Paulo na Primeira República.
A arquitetura e o urbanismo são uma forma de discurso
Há um historiador espanhol, chamado Fernando Chueca Goitia, que afirma que “a cidade é um arquivo da história”. Esta frase me impactou desde a minha graduação. Os edifícios, os traçados das ruas, as pontes todas existem porque são fruto de uma atitude. Esta atitude pode ser política, pode ser econômica, pode ser emergencial, mas ela sempre dirá algo sobre o corpus social onde ela emergiu. Desta maneira, a arquitetura e o urbanismo são uma forma de discurso. Como profissionais da pesquisa, somos treinados a não apenas olharmos os objetos em si, mas sobretudo as fontes que informam sobre eles. Desta maneira, os arquivos são instituições que permitem aos historiadores das cidades, da arquitetura e das artes obter dados, documentos e informações que são fundamentais para a decifração dos discursos que estão nas ruas. Desta maneira, eu sempre afirmo aos meus alunos: não há casuísmo algum na produção da cidade. Basta que procuremos fontes para que decifremos os jogos de escalas.
Os arquivos são, assim, imprescindíveis para a memória, para a história e para a manutenção ou reavaliação dos discursos contidos nas pedras das cidades
Um caso de amor pela documentação do APESP
Os arquivos da Secretaria da Agricultura, sob guarda do APESP, foram, então, fundamentais para eu entender os meandros da produção social da arquitetura moderna em São Paulo, na minha Iniciação Científica e no meu mestrado sobre o Edifício Esther. Não dava mais, depois de ver a documentação arquivada, para pensar que os proprietários do Esther estavam imbuídos “apenas” de um vanguardismo; eles eram empresários da cidade, e isto eu achei nos empreendimentos deles ainda no século XIX, nos núcleos coloniais que deram origem aos municípios de Cosmópolis e Arthur Nogueira, na Região Metropolitana de Campinas, e no prédio de apartamentos que eles construíram em São Paulo, e que eu estava estudando.
Os fundos do setor cartográfico e do iconográfico foram fundamentais para eu ir costurando as relações entre cidade, território e prédios, algo que faço até hoje.
Depois do mestrado, o APESP me ajudou com fundos que diziam respeito a bairros da cidade em que houve produção de arquitetura neocolonial. Imagens e documentos textuais também vieram dos fundos do APESP. Já professor da UNIFESP, eu passei a encaminhar meus orientandos de graduação e pós-graduação para o Arquivo. Muita documentação que aparentemente não informa sobre as práticas da construção da cidade tem sido usada por nós. Uma orientanda, Paola Pascoal, fez sua pesquisa de Iniciação Científica, monografia de conclusão de curso e mestrado pesquisando o acervo do pintor e professor Theodoro Braga, que o APESP havia recém-recebido. Havia muita documentação aparentemente sem nexo com a arte marajoara, como recortes de Diário Oficial do Estado do Pará, terra de Braga. Mas foi olhando exatamente para estes documentos, que Pascoal conseguiu encontrar vínculos políticos, emocionais e profissionais de Braga. Outra aluna minha tem pesquisado documentação sobre habitantes da Zona Norte da Capital, em uma época em que ela era zona rural da capital. Raissa Marcondes encontrou plantas e algumas petições que estão descortinando a face social da Zona Norte. Temos muitos casos de amor pela documentação arquivada no APESP no grupo de pesquisa.
O arquivista e o pesquisador “perseguidor” de documentos
Como trabalhamos com fontes que provêm de diversos agentes públicos, muitas vezes torna-se complicadíssima a obtenção de peças documentais exatamente porque ou se perderam nas repartições que as produziram, ou porque transitaram dentro das inúmeras secretarias de governo, nunca tendo retornado efetivamente para aquela que sabemos que a produziu. Isso leva a um trabalho muito metódico, dedicado e quase compulsivo, que é de sempre olhar mais um fundo documental. Recentemente, estávamos atrás de informações sobre Santana no período do Império. A base do APESP não dizia muito sobre os documentos que queríamos porque parte ainda estava em processamento. De repente, numa outra visada, achamos. O trabalho do arquivista e de toda a equipe técnica do APESP, que é constante, também faz o pesquisador ser um ‘perseguidor’ constante da documentação, pois a alimentação de dados no Arquivo é constante, e a do pesquisador, quando não atarantado com prazos acadêmicos, como defesa da dissertação, também é.
Nas listas de colonos imigrantes, a montagem de um quebra-cabeças
Creio que falar do mestrado seja interessante. Procurando entender de que maneira a família Nogueira demandou a construção de um prédio multifuncional para aluguel, com diversos andares de escritórios, eu notei que parte desses andares estava destinada às administrações desses negócios. Mas eu ainda não sabia quais eram as empresas. Depois de mergulhar na leitura do diário do proprietário do Edifício Esther, o advogado e usineiro Paulo de Almeida Nogueira, elenquei informações e notei que parte deflagradora da riqueza da família tinha sido os núcleos coloniais montados pelo governo do Estado de São Paulo nas terras lindeiras às da família. Estes Núcleos, Cosmópolis e Arthur Nogueira – que era irmão de José Paulino, sogro de Paulo de Almeida Nogueira – deram suporte à produção de açúcar na Usina Açucareira Esther, cujo nome era uma homenagem à filha de José Paulino e esposa de Paulo de Almeida Nogueira. Os núcleos tinham sido povoados com imigrantes suíços-alemães, parte de uma postura vista como “moderna” na época, e que estava entrelaçada com a teoria eugênica. Estes imigrantes tornaram-se lavradores nos lotes do Núcleo Colonial, mas depois acabaram vendendo sua força produtiva para a Usina Esther. Só consegui montar este quebra-cabeça por conta da belíssima documentação arquivada no APESP. Achei as listas de colonos imigrantes, nome por nome; encontrei,
também, os lugares que ocuparam nos núcleos coloniais. Esta documentação foi primordial para entender a presença desses usineiros nas relações políticas e de poder com o governo republicano em São Paulo, já que eram vinculados com personagens como Campos Salles, Barão Geraldo de Rezende, Prudente de Morais, a família Mesquita etc.
Os documentos cartográficos salvaguardam as ações humanas para a feitura de cidades
A guarda de documentos cartográficos é uma prática muito interessante. A produção de mapas e de outras peças gráficas, como plantas, projetos e esquemas territoriais e urbanos é muito antiga, mas na Idade Moderna sofreu um grande avanço em métodos e em procedimentos. As Grandes Navegações impulsionaram a formação de escolas importantes de cartografias de maneira a gerar a dominação de outros territórios.
Para quem se dedica ao estudo da história urbana e da arquitetura torna-se fundamental não apenas conhecer os arquivos que possuem acervos cartográficos, mas conhecer a história deles.
O acervo cartográfico do APESP é de uma riqueza documental singular. A documentação alusiva às cidades paulistas, com destaque para a capital, compreende mapas, plantas, cortes, elevações e documentação oficial que nos abre janelas investigativas infindáveis. Algo que considero genial sobre os arquivos com este tipo de documentação é que eles salvaguardam as ações humanas para a feitura de cidades, fazendo-os, também, atos políticos: na sua manutenção, enquanto centros de pesquisa; na sua constituição, enquanto ação cultural; em seu acervo, como jogo de forças entre público e privado.
Os arquivos tornam a história cientificamente relevante
Arquivos são peças chave de compreensão dos percursos da sociedade. Eles trazem as dimensões dos acertos, dos erros e dos sonhos de determinada organização social. Não é impossível fazer história sem arquivos, mas é impossível que esta história seja cientificamente relevante. Desta maneira, os arquivos são umbrais. Tempos atrás, escrevi um texto para apreciação de um livro que dois ex-alunos organizaram sobre o arquivo municipal de Campinas. Vou reproduzir aqui o que deixei registrado lá:
Frequentar um arquivo é reencontrar vínculos, despertar lembranças, reler cartas, realizar conexões, descobrir trajetórias, achar explicações, deduzir comportamentos e despertar reações dentro de nós. A coragem daqueles que frequentam os arquivos é a de se reinventar, de permitir ouvir-se e de reavaliar as certezas do presente. Por isso, a dimensão arquivística está atrelada às práticas patrimoniais. Ela é lirismo em forma de documentos.
Dicas aos pesquisadores que iniciam nos arquivos
Os arquivos devem ser vistos como uma porta de entrada para qualquer pesquisa. Mas um alerta fundamental é não pensar que a documentação que ali está depositada nasceu para dar origem à pesquisa que estamos empreendendo. A documentação nasceu por circunstâncias administrativas, ou memorialísticas, ou, ainda para gerar uma peça processual. A organização do arquivo permite recompor as procedências dessas peças, e, assim, ampliar a percepção do circuito de produção, circulação, apropriação e guarda final no Arquivo. Minha dica mais direta é:
Preste atenção sempre na mensagem que a peça documental traz em si. Ou seja, pergunte-se por que ela foi criada e para atingir a quem? A mensagem própria do documento é apenas uma das dimensões a extrairmos dele, pois o rito de sua produção e destinação também traz mensagens que nos levarão a outras fontes. Com isto, temos uma estratégia investigativa montada.
Publicações de Fernando Atique
ATIQUE, Fernando. Memória Moderna: a trajetória do Edifício Esther. 2 edições. São Carlos: RiMa / FAPESP, 2004 e 2013.
______Arquitetando a “Boa Vizinhança”: arquitetura, cidade e cultura nas relações Brasil-Estados Unidos, 1876-1945. 1ª ed. Campinas: Pontes / FAPESP, 2010.
_____ Arquitetura Evanescente: a destruição de edifícios cariocas em
perspectiva histórica. 1ª ed. São Paulo: EDUSP / FAPESP, 2019.