“Eu, amanuense que escrevi…” | Arquivos e inteligência artificial: novas possibilidades para difusão de acervos

O Arquivo Público do Estado de São Paulo une história e inteligência artificial para dar novos rostos à memória
O Arquivo Público do Estado de São Paulo tem se consolidado como referência nacional na preservação e difusão de acervos históricos. Em 2025, a instituição deu um passo ousado ao unir tecnologia e memória coletiva na exposição “Eu, amanuense que escrevi…”, parte do programa Presença Negra no Arquivo.
Nesta exposição, o trabalho de Diego Rimaos, apresenta uma série de obras de arte concebidas como um simulacro de um Registro Geral (RG), documento tradicional de identificação pessoal no Brasil. A composição mimetiza fielmente os elementos visuais de um RG autêntico, utilizando uma paleta de verdes e detalhes gráficos característicos, como molduras ornamentadas, brasões e campos textuais alinhados.
A mostra nasceu a partir de um documento raro: o Livro de Matrícula de Africanos Emancipados (1864-1868), registrado por Luiz Gama, abolicionista, escritor e, neste caso, amanuense. Reconhecido pela UNESCO como patrimônio documental da América Latina e Caribe, o livro traz as descrições físicas e jurídicas de mais de 120 sujeitos escravizados em São Paulo no século XIX.

Inteligência artificial a serviço da memória
A grande novidade da exposição foi o uso de inteligência artificial para transformar essas descrições em retratos digitais. Cabelos, feições, tons de pele, cicatrizes e marcas descritas por Gama foram traduzidos em imagens, dando rosto a pessoas que, até então, estavam restritas a palavras em registros oficiais.
Esses retratos foram apresentados como simulacros de cédulas de identidade, provocando reflexões sobre cidadania, ancestralidade e os mecanismos de registro de pessoas no Brasil do século XIX.
Para o Diretor do Arquivo, Thiago Nicodemo:
“O uso de ferramentas de inteligência artificial em instituições de preservação da memória, como arquivos, bibliotecas e museus, tem se tornado cada vez mais frequente. Essa inserção tecnológica inaugura novas perspectivas de trabalho para a área da arquivologia, permitindo tanto a automação de tarefas rotineiras quanto a elaboração de análises críticas sobre a própria materialidade digital. Trata-se de um campo interdisciplinar, ainda em consolidação, que envolve profissionais da ciência da informação, profissionais de acervo e especialistas em tecnologias computacionais“.
Repercussão e impacto
A iniciativa não passou despercebida. A exposição ganhou destaque na imprensa nacional, com reportagens no Jornal da Band e na GloboNews, além de alcançar repercussão internacional em veículos como o jornal espanhol El País.
Mais do que reconhecimento, a mostra ampliou o debate sobre a importância dos arquivos como espaços dinâmicos, capazes de dialogar com questões contemporâneas como racismo estrutural, memória social e reparação histórica.
- Verifique a seguir a reportagem publicada no periódico El Pais, no dia 26 de maio de 2025:
https://elpais.com/america/2025-05-26/la-ia-recrea-los-rostros-de-esclavizados-en-brasil-gracias-a-las-descripciones-de-un-abolicionista.html

- Verifique a seguir a reportagem completa veiculada no Jornal da Band, do dia 31 de maio de 2025:
- Verifique a seguir a reportagem completa veiculada no Globo News:
O Arquivo como espaço de inovação
Tradicionalmente visto como lugar austero, o Arquivo Público do Estado de São Paulo tem buscado novas formas de difusão, que vão além da tradicional consulta presencial. Exposições interativas, ações educativas e agora a experimentação com IA mostram que a instituição está atenta às demandas de um público cada vez mais conectado e crítico.
Com “Eu, amanuense que escrevi…”, o Arquivo reafirma sua missão: organizar, preservar e dar significado à história, aproximando passado e presente em um diálogo que ultrapassa os limites físicos de suas estantes e alcança a sociedade como um todo.
No dia 24 de agosto de 2025, a equipe do Arquivo, junto com o artista da mostra, receberam a visita de Christiane Taubira, escritora e ex-ministra da Justiça da França, autora do livro ‘A escravidão contada à minha filha’. Durante a visita, a autora também foi acompanhada pela Profa. Dra. Lígia Fonseca Ferreira, da Universidade Federal de São Paulo, tradutora do livro. A obra aborda temas como colonização, racismo e a luta pela liberdade.
Christiane Taubira é também autora da Lei francesa que, em 2001, reconheceu a escravidão e o tráfico de pessoas como crimes contra a humanidade — legislação que ficou conhecida como “Lei Taubira”. Na oportunidade a escritora comentou sobre o impacto das obras e a importância de Luiz Gama, para conferir, acesse: https://www.instagram.com/p/DNvSZ8o3LDB/

Ao transformar descrições em imagens, o Arquivo Público do Estado não apenas recupera histórias esquecidas, mas também abre caminho para uma reflexão coletiva: como a tecnologia pode ajudar a contar as histórias que ainda precisam ser ouvidas?
Para o artista Diego Rimaos:
“O trabalho vai muito além da tentativa de gerar hipóteses visuais. Essa justaposição de passado e presente, arquivo e tecnologia, é o coração do projeto. Transformar o silêncio visual da escravidão em um campo de presença e de memória compartilhada o produto final“.
“Eu, amanuense que escrevi…” mostra que os arquivos não são depósitos do passado, mas ferramentas de futuro, onde a memória encontra os algoritmos para seguir pertinente e capaz de tornar visíveis sujeitos historicamente marginalizados.
Significa não apenas assegurar o acesso a documentos que os mencionam, mas também criar condições para que eles próprios possam produzir, interpretar e disputar narrativas sobre suas trajetórias. Quando utilizada de forma ética e antirracista, a tecnologia torna-se uma aliada na reconstrução de histórias silenciadas, na valorização de identidades culturais diversas e na criação de novos espaços de reflexão.